Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um 'Thelma & Louise' com coágulos à mostra

Em 'Love Lies Bleeding', a personagem Lou se livra do jugo machista para cair dentro de uma relação tóxica | Foto: Divulgação

Sensação da última Berlinale, onde foi comparado ao cult "Thelma & Louise" (1992) em sua forma de retratar a sororidade, "Love Lies Bleeding - O Amor Sangra" vai estrear enfim no Brasil abrindo um debate sobre violências de gênero e tabus da representação LGBTQIAPN .

É um exemplar - e dos bons - do filão da "comédia de erros", com picos de humor e bastante excentricidade, dialogando mais com a fase anos 1980 dos irmãos Coen. Está mais próximo da extravagância furiosa de "Gosto de Sangue" (1984) e de "Arizona Nunca Mais" (1987) do que do Ridley Scott feminista com Susan Sarandon e Geena Davis. Ridley soa (sempre) demasiado bem comportado para o que a realizadora Rose Glass apresenta em seu thriller queer, que ataca o machismo frontalmente. As personagens esculpidas por Kristen Stewart e Katy O'Brian não se encaixam em modelos de conduta de fácil aprovação pela moral hollywoodiana.

"A onda de filmes queer rotuláveis acabou, pois agora a forma de representar que buscamos é aquela que demonstrem aonde as pessoas querem ir com seu desejo", explicou a atriz Kristen Stewart no Festival de Berlim, onde foi presidente do júri em 2023.

Alçada aos holofotes da cena indie anglo-americana com "Saint Maud" (2019), Glass assina a direção e o roteiro de "Love Lies Bleed", dividindo a escrita com Weronika Tofilska. Salpicar toda sua estrutura com especiarias do horror psicológico, sobretudo por meio de alucinações.

Chega a romper com o realismo em momento de clímax, sem nunca desatar os nós com uma certa comicidade involuntária que brota de situações brutais. É um filme de brutalidades das mais diversas, mas é engraçado.

"O mais esforço era permitir que tudo soasse real, apesar do pouco tempo que tivemos, até para os ensaios", diz Rose, em Berlim. "A chegada de Katy ao filme trouxe uma química a um só tempo simples e complexa entre a personagem dela e a de Kristen".

Esmero visual

A cineasta jamais descuida do esmero visual com a cinematografia, numa aposta em planos de altas temperaturas de cor. Como sua trama é ambientada nos anos 1980, Rose carrega "Love Lies Bleeding - O Amor Sangra" nos excessos, numa direção de arte kitsch, em figurinos demasiadamente acentuados na cor, em penteados extravagantes. Há excesso de pigmentos até no amarelado sorriso de nicotina de Daisy, engate da personagem de Kristen, vivida por Anna Baryshnikov (filha do bailarino Mikhail).

"Desde o primeiro momento que Rose e eu conversamos, percebi que estávamos fazendo um filme sobre mulheres fortes", disse Kristen. "Daí eu disse: 'vou viver a mais fraca delas'. É um processo de empoderamento".

Conduzido a partir de uma montagem taquicárdica que nunca se perde, "Love Lies Bleeding" estrutura-se como um romance no momento em que a gerente de um ginásio, Lou (Kristen), toma conhecimento de uma nova aluna, a fisiculturista Jackie (papel de Katy O'Brian, impecável em cada tomada). A paixão entre as duas é instantânea, vitaminada por tórridas noites (e manhãs) de sexo, filmadas por Glass nas raias da sensualidade, sem objetificação.

"O cinema queer do passado acabou", diz Kristen.

Obcecada em ganhar um concurso de Miss Força, Jackie injeta esteroides das mais duvidosas estequiometrias no seu corpo, o que mexe com o seu imaginário e piora o sentimento de posse (disfarçado de instinto de proteção) por Lou, que tem dois agravantes no seu passado. O seu cunhado, J.J. (Dave Franco), é um adúltero que bate na mulher (Jena Malone). Já o pai, Lou Sr. (Ed Harris, em estonteante atuação), é um traficante de armas.

Jackie quer ver a sua amada livre dessas duas forças machistas de entrave e passa dos limites no empenho para libertá-la deles, em atitudes que atraem a polícia e o FBI. Lou vê-se uma vez mais refém, agora não mais de figuras masculinas que deturpam a hombridade, mas, sim, de um amor tóxico. O resultado de todos esses componentes é um espetáculo sanguinolento.