Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Frações de Costa-Gavras em Cannes

Aos 91 anos, Costa-Gravas, o cineasta que fez fama com 'Z' (1969), regressa à Croisette para rever sua obra | Foto: Divulgação

Envolvido há dois anos na escrita de uma narrativa serializada para a TV (ou streaming), o mítico diretor franco-grego Costa-Gavras vai virar... série. O 77º Festival de Cannes (14 a 25 de maio) vai exibir, em homenagem a ele, "La Vérité Est Révolutionnaire - L'Aveau", um dos dez episódios de Le siècle de Costa-Gavras". A direção é de Yannick Kergoat e o roteiro, de Edwy Plenel. São 52 minutos dedicados a um dos filmes mais aclamados do cineasta, "A Confissão", lançado em abril de 1970.

"Com o descrédito das lutas de classes, a religião mais poderosa que existe neste mundo se chama dinheiro, uma força amoral que não guarda respeito por nada", disse o cineasta ao Correio da Manhã, numa recente entrevista em Paris.

Respeitado como um papa do thriller político, à força do sucesso mundial de "Z" (1969), o realizador de 91 anos, ganhou, faz pouco, no Festival de Locarno, um troféu honorário pelo conjunto de sua carreira como cineasta. Dois dos filmes mais antigos de sua obra hoje correm pela Europa, em cópias novas: "Tropa de Choque: Um Homem a Mais" (1967) e "Crime no Carro Dormitório" (1965). São títulos de uma fase anterior à sua consagração. "Dialogo com o suspense de modo a ter um ponto de conexão com as plateias às quais vou apresentar minhas teses. Plateias que, muitas vezes, estranharam ver um camarada que discutia o papel da esquerda e da direita, como eu sempre faço", disse o cineasta.

No Brasil, o longa-metragem mais recente do diretor, o imperdível "Jogo do Poder", está disponível na plataforma Amazon Prime. Ao ser homenageado pelo conjunto de sua obra no Festival de Veneza, há cinco anos, quando pôs esse trabalho, batizado originalmente de "Adults in The Room", na roda pela primeira vez, Konstantinos Gavras (seu nome de berço) incluiu o Brasil num debate acerca da economia da exclusão. Na ocasião, ele definiu o governo de nosso ex-presidente (anterior a Lula) com uma analogia irônica: "Bolsonaro é Charles Chaplin".

Na ocasião, o diretor explicou: "Um roteiro não filmado é como um amor que acabou mal. E eu tenho vário amores quer não terminaram bem, nessa lógica da escrita de filmes. Contei as histórias que queria, embora eu tenha vontade de contar outras", disse Costa-Gavras. "Cinema não é como um jogo de futebol, em que as regras estão estabelecidas, cronometradas e arbitradas. Cinema é um espetáculo vivo, que se pensa".

Eletrizante, como tudo o que ele fez e faz, "Jogo do Poder" é um drama de tintas cômicas sobre a crise da Grécia nos anos 2010. "Vivo na França há anos e já filmei no mundo inteiro, mas, se você nasce grego, todo o passivo histórico de nossa pátria vem com a gente, e a tragédia é parte desse patrimônio que nos define. A minha contribuição a uma situação de tensão como essa que enfrentamos em nosso país, com a falência econômico, é abrir reflexões que transcendam fatos. Fato é para o jornalismo. O cinema parte do fato para gerar transcendências", disse o realizador que partiu do livro homônimo de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, sobre a falência de sua nação no fim da primeira década do século.

Christos Loulis vive o próprio Varoufakis no longa-metragem, que se concentra em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas. Valeria Golino e Ulrich Tukur completam o elenco da produção, centrada em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas. "Estou há muito tempo atento ao que se passa na Grécia, em suas várias tragédias. Comecei essa história em 2007, quando percebi que a Grécia ia quebrar e que a esquerda ia se colocar mais à direita diante do quadro econômico do país. Espero que a nova presidente da Comissão Europeia ajuste essa situação", disse o cineasta, que relembrou fatos marcantes de sua vida nas telas na autobiografia "Va où il est impossible d'aller", lançado em 2018, em meio ao Festival de Cannes.

Egresso de uma vila do Peloponesso chamada Loutra-Iraias, Costa-Gavras, ganhador da Palma de Ouro de 1982, com "Missing", seguiu atacando o lado mais conservador da política sul-americana. Segundo ele, "incongruências do contemporâneo nos seguem por todos os lados". Em 2019, ele ainda ganhou tributos em San Sebastián por sua bem-sucedida carreira. "Houve um tempo em que cinema de autor era um cinema de resistência. Mas vimos com o tempo que qualquer filme capaz de espelhar a inquietude de seus diretores é autoral. 'Star Wars' é um filme de autor, por exemplo".