Por: Mia Andrade

A história em ruínas: a luta pela sobrevivência dos museus do Crato

Patrimônio histórico e cultural, Museu do Catro segue negligenciado | Foto: Ricky Seabra/Arquivo Pessoal

Na Região Metropolitana do Cariri, especificamente no município de Crato, existe um prédio que abriga dois museus guardiões da história e cultura cearense: o Museu Histórico J. Figueiredo Filho (conhecido como Museu Histórico do Crato) e o Museu de Arte Vicente Leite.

O edifício tem uma história tão rica quanto à das obras dos museus. Construído no final do período colonial brasileiro, serviu inicialmente como a Casa de Câmara e Cadeia do município, além da Câmara Municipal e da Prefeitura. Embora sua construção remonte a 1817, foi apenas no final do século XIX que assumiu a forma que conhecemos hoje. Ao longo dos últimos 200 anos, foi testemunha das mudanças do Crato e do Ceará e agora é a casa do Museu Histórico do Crato.

Em 1970, surgiram os primeiros indícios dos museus, sendo o primeiro andar, onde ficava a câmara de cadeia reservado para o Museu Histórico do Crato. Em cima, ficou o Museu de Arte Vicente Leite, idealizado em 1972 pelo artista plástico Bruno Pedrosa, que fez uma homenagem ao artista cratense que empresta seu nome à instituição. Os museus contam com obras de arte doadas que relatam um pouco da história do estado e do município.

No entanto, o prédio que guarda a história cratense vem sendo negligenciado, passando por quase uma década de inatividade devido a problemas estruturais e falta de manutenção. Em 2008, numa tentativa de reforma fracassada, a empresa responsável tentou instalar um forro de gesso que precisou ser retirado, logo depois abandonou a obra após dificuldades na prestação de contas.

Desde 2012, após outra tentativa frustrada de reforma em que foi removido o piso superior do prédio, onde ficava o Museu de Arte Vicente Leite, o andar entrou em período de inatividade. Parte de seu acervo foi transferida para uma sala no Museu Histórico, enquanto artistas locais têm a oportunidade de expor seu trabalho em duas paredes dedicadas a exposições.

Em setembro de 2021, foi publicado o último (de sete editais) de licitação para contratar serviços de engenharia visando à reforma do edifício. O projeto contaria com recursos provenientes de um contrato de repasse firmado entre o Ministério do Turismo/Caixa Econômica Federal e o município de Crato, mas, segundo a prefeitura do Crato, não obteve manifestação de nenhuma empresa.

Cuidando da história

O ex-diretor do Museu Histórico do Crato, Ricky Seabra, conta que assim que recebeu a tarefa de cuidar do museu em fevereiro de 2013, ele abriu um boletim de ocorrência para investigar o sumiço de diversas obras do local. Com ajuda de dois estagiários da Universidade Federal do Cariri (UFCA), a equipe do museu iniciou o levantamento das obras com base em documentos internos e relatórios deixados pela última gestão.

Um banner foi criado para fornecer um panorama rápido e abrangente da situação do acervo do Museu de Arte Vicente Leite, onde as obras foram classificadas de acordo com sua condição atual.

“Muitos boatos circulavam e ainda circulam a respeito do que aconteceu com as obras dos museus e sempre foi nossa preocupação esclarecer essa dúvida. Na época, ter registrado o boletim de ocorrência pelo sumiço causou um alvoroço e ainda sim, ficamos sem saber o que aconteceu com algumas delas”, explica Seabra ao Correio da Manhã.

O relatório de transmissão de cargo revelou dados importantes sobre o acervo do Museu Vicente Leite, destacando erros e discrepâncias, obras em condições de expor, com necessidade de restauro e obras desaparecidas ao longo das décadas. Segundo Seabra, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), por meio da Promotoria da Comarca do Crato, tem um procedimento aberto, desde 2013, sobre os itens que sumiram.

“A verdade é que algumas coleções dos dois museus vêm se degradando gradualmente ao longo dos anos. Na época em que começamos, chegamos a encontrar algumas das obras largadas como se não fossem nada. Como se não fizessem parte da história”, relatou.

Durante uma gestão anterior à sua, Seabra relata um incidente no andar superior do Museu de Arte, onde um visitante teve a perna presa no piso que cedeu. Como resultado, o andar foi interditado, e as peças artísticas foram transferidas para uma sala no Museu Histórico. “Acredito que talvez apenas interditar a área onde havia quebrado o piso e tentado recuperar sem iniciar o quebra-quebra seria melhor e mais seguro do que remover o piso do andar de cima. Derrubaram tudo e no final, não tinha dinheiro para finalizar. E o que acontece se o museu não tem piso? Não tem museu, não é?”, completou à reportagem.

Manutenção e cuidados

O prédio, tombado em níveis estadual e municipal, é objeto de estudo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde a década de 1940, porém, até os dias de hoje não chegou a ser tombado de forma federal e por isso, não pode receber recursos para a revitalização.

Macaque in the trees
Raízes de embaúbas (tipo de árvore) já desceram 3 metros pra dentro do museu | Foto: Ricky Seabra/Arquivo Pessoal

Ao longo dos quatro anos em que foi diretor, para manter os museus na ativa, Seabra teve que elaborar ideias para lidar com a falta de recursos e apoio da prefeitura do Crato. O diretor relata que foi através do voluntariado e de projetos foi que os museus conseguiram se manter ativos e com visitantes.

“Teve uma época que, um prédio ao lado do museu, estava em obra e o pessoal que estava trabalhando lá veio pedir para a gente usar nossa eletricidade. Embora nós não tivéssemos tantos recursos, disse que tudo bem, mas eles teriam que nos ajudar a recolocar os portões pesados das celas da cadeia para que nós pudéssemos organizar novamente. Eles toparam”, relatou.

A manutenção do museu também foi uma preocupação constante durante esse período. A falta de recursos regulares e a burocracia dos processos licitatórios foram desafios enfrentados pela equipe. Para contornar essas questões, Seabra se dividia entre ser o diretor do museu e o zelador.

"Todo diretor de museu municipal precisa ser um zelador também. Se não estiver disposto a colocar a mão na massa, o museu não avança. Caso contrário, será necessário contratar alguém para cuidar das pequenas manutenções e zeladorias. Costumava dizer aos funcionários, voluntários e estagiários que o trabalho no museu envolve uma combinação de criatividade para torná-lo divertido, burocracia que vai ser chata e o trabalho físico, pois é preciso colocar a mão na massa", afirma.

O ex-diretor relata que a equipe solicitou uma dedetização para o edifício, porém, a demora na aprovação do serviço devido à burocracia foi tão grande que ele mesmo encontrou uma solução. “Minha solução foi simples. Adotei uma gatinha preta que ficava no museu durante toda a madrugada, caçando baratas e afastando os ratos. Surpreendentemente, funcionou, o problema cessou, e mesmo assim, a solicitação não foi aprovada”, relata.

Em 2013, o Museu Histórico do Crato ganhou o Edital de Modernização de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) contribuiriam com R$ 260 mil e o a prefeitura contribuiria com R$ 40 mil. Porém, a gestão municipal da época recusou a contribuir com o valor e o projeto foi cancelado.

“Nós nem queríamos uma grande reforma, dessas que derrubam o prédio, fazem grandes rampas, jogos de luz ou qualquer outra coisa exagerada. Nós queríamos uma reforma simples, que pudesse dar valor à arquitetura original do edifício, sem comprometer a estrutura e de forma que não causasse tanto prejuízo. Até porque, sabíamos que não adiantaria inaugurarmos um prédio gloriosamente restaurado se não tivermos verba para uma programação artística-cultural”, conta.

Seabra e a equipe produziram na época um plano de atividades para manter o museu com um custo baixo. Entre as sugestões, estava manter o equilíbrio entre a restauração física dos museus, sem comprometer o dinheiro deixado para as atividades culturais e pagamento dos artistas.

Além disso, Seabra enfatizou a importância de implementar um modelo de zeladoria semelhante ao holandês, onde o zelador é responsável por diversas tarefas de manutenção e conservação do prédio. Ele explica que a abordagem visa garantir uma resposta ágil a questões emergenciais, como telhas quebradas ou danos causados pela umidade.

A colaboração entre os museus municipais e as Secretarias de Controle Urbano foi sugerida como uma forma de liderar a revitalização urbana, preservando estéticas perdidas para a especulação imobiliária. Exemplos de trabalhos de manutenção realizados pelo ex-diretor e sua equipe, como o restauro de medalhões e a reinstalação de portões originais, ilustram os esforços contínuos para preservar o patrimônio histórico do Crato.

“Infelizmente, muitos desses esforços acabaram sendo em vão. O apoio prometido não se concretizou e o projeto ficou estagnado. É frustrante ver tanto potencial sendo desperdiçado devido à falta de compromisso e interesse das autoridades locais”, lamenta.