'Mães de Haia': brasileira ganha guarda dos filhos. Raquel Cantarelli segue lutando pela guarda
Apesar de o caso de Raquel Cantarelli ter ganhado notoriedade, há diversos outros casos de mães correndo na justiça. E algumas brasileiras conseguem ganhar a causa.
Por Gabriela Gallo
Nos últimos meses, o Correio da Manhã realizou uma série de reportagens sobre "mães de Haia", nome adotado para mulheres envolvidas em disputas judiciais causadas pelo tratado internacional Convenção de Haia, que visa proteger crianças retiradas de sua terra natal. A reportagem contou o caso de Raquel Cantarelli, brasileira que luta para trazer as duas filhas de volta da Irlanda. Apesar de o caso de Raquel ter ganhado notoriedade, há diversos outros casos de mães correndo na justiça. E algumas brasileiras conseguem ganhar a causa.
Esse é o caso da Júlia*, que depois de cinco anos ganhou em 1ª instância no Ministério Público Federal (MPF) o processo para ter a guarda dos dois filhos. O pai recorreu da decisão e o caso segue para 2ª instância e, para a reportagem, ela não descartou as chances da disputa chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã, ela contou que ganhou a causa graças à exceção 13-B da Convenção de Haia, que impede o repatriamento se houver a constatação de tratamento abusivo, risco ou violência à criança. Júlia acusa o pai dos meninos de abuso sexual e alienação parental.
Convenção
Estabelecida em 1980, a Convenção de Haia é um importante instrumento internacional que trata da subtração de crianças. Com base nela, crianças que são levadas para fora dos países onde nasceram têm o direito de ser repatriadas. Na avaliação de advogados que defendem mulheres atingidas, a aplicação da convenção em muitos casos vem se dando de uma forma automática, priorizando a questão geográfica sem levar em conta se haverá de fato maior bem-estar e segurança às crianças.
Brasileira com dupla cidadania norte-americana, Júlia trabalhava em uma universidade dos Estados Unidos e lá constituiu família. Mãe de dois filhos, ela se divorciou do ex-marido pouco tempo depois do nascimento do filho caçula, do casal. Em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã, ela contou que, após um longo processo, o ex-casal combinou ter a guarda compartilhada das crianças, apesar de o pai passar menos tempo com os filhos do que a mãe.
Abusos
Mas tudo mudou em 2017, quando ela descobriu os abusos praticados pelos ex-marido contra os filhos, especialmente contra o filho mais novo, que na época tinha entre seis e sete anos. Ao perceber um comportamento estranho dos filhos, ela levou o mais novo para uma psicóloga, onde ela teve a confirmação dos casos.
"O meu filho começou a ter muito medo de ir na casa do pai. Ele não queria mais dormir com o pai e o pai o obrigava a dormir com ele. O pai mostrava para ele as partes íntimas 'retas' e começava a tocar nele. Quando ele [pai] ficava com raiva, puxava o filho pelos braços, trancava o quarto e deitava em cima dele, sem o filho conseguir respirar, tocava nas partes íntimas do filho com agressão. A mais velha não via com a porta fechada, mas escutava os gritos do irmão", detalhou Júlia à reportagem.
"Às vezes eu me culpo por não ter percebido antes. Eu nunca imaginei o pior. Não que eu me desse muito bem com o pai, mas eu nunca imaginei que fosse algo tão grave", ela relatou.
Júlia descobriu os abusos na mesma época em que o filho caçula sofria bullying físico e verbal na escola em que estudava, mesmo local onde o pai da criança trabalhava como professor. Ela tirou o filho da escola, mas o pai exigiu que o filho ficasse e ameaçou entrar na justiça para ter a guarda total das crianças. Nisso começou um longo processo judicial entre os pais.
Brasil
Em 2018, o processo acabou. Júlia não perdeu a guarda das crianças e as trouxe para o Brasil para passar as férias com a família. No dia de voltar para os Estados Unidos, ela recebeu um comunicado do genitor dos filhos e da sua advogada informando que o pai das crianças abriu um novo processo, sem consultá-la, acusando-a de alienação parental. E dessa vez o processo iria seguir com outra psicóloga - uma conhecida dele.
"Às vezes, a pessoa que acusar o pai ou a mãe de alienação parental é o próprio alienador. Ele mesmo alienou os filhos com o comportamento dele", disse à reportagem.
Como se fosse coincidência do destino, o vôo dela foi cancelado e reagendado para dias depois. Nesse meio tempo, ela foi atrás de advogados, pesquisou sobre a legislação brasileira, segundo relatou à reportagem, ponderou que os filhos estariam mais seguros no Brasil do que nos Estados Unidos, especialmente por serem amparados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com os filhos chorando com medo de voltar, ela decidiu ficar no Brasil com as crianças.
"Eu deixei para trás mais de 20 anos de uma vida toda construída nos Estados Unidos, mas foi uma decisão fácil pela proteção dos meus filhos. Foi a melhor decisão que eu já tomei na minha vida!", contou à reportagem.
Tornozeleira
E os anos de disputa judicial foram longos para Júlia e para os filhos. O ex-marido conseguiu convencer a justiça que Júlia precisaria usar uma tornozeleira eletrônica, instrumento que ela teve que usar por mais de um ano. Na época, ela tornou o pé, mesmo pé em que colocaram a tornozeleira. "Eu não sou uma criminosa. Nunca passei por nenhum processo criminal, nem aqui nem nos Estados Unidos", ela enfatizou.
Nesse meio tempo, ela e os filhos tiveram que readaptar toda a rotina: ela deixou de ir para a piscina com os filhos, não usava roupas que mostrassem os tornozelos e teve que limitar seu trabalho para aulas on-line, já que não podia ir trabalhar presencialmente. "Quando a mãe está usando tornozeleira eletrônica, não é só a mãe que está privada de liberdade, os filhos também estão", contou Júlia à reportagem.
Agora, totalmente livre, ele segue sua disputa judicial para permanecer com a guarda dos dois filhos.
*A reportagem usou um nome fictício para preservar a identidade da personagem, por orientação dos seus advogados