Coluna Jânio Freitas: Uma sentença de morte
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Em um só documento, Jair Bolsonaro confirmou as acusações estrangeiras e brasileiras aos seus propósitos destrutivos para a Amazônia, atestou serem mentirosas afirmações suas na Mensagem ao Congresso sobre 2019-2020, e expôs o país a graves reações internacionais. Tudo isso em uma sentença de morte da Amazônia sob a forma de projeto mandado ao Congresso: a abertura da região, inclusive das reservas indígenas e dos parques nacionais, a toda exploração empresarial.
O desmatamento amazônico, preocupação de numerosos países e de cientistas das alterações climáticas, é incentivado sob disfarce no projeto. A oferta da área florestal à pecuária, explicitada no texto, pressupõe o desmatamento preliminar para a formação de pastos. E em imensas extensões, porque a criação de gado com lucratividade em escala empresarial, ali, recomenda grandes rebanhos, dado o oneroso transporte aos distantes centros de distribuição e exportação.
A abertura das reservas indígenas à exploração empresarial, por sua vez, encobre o transtorno total das relações do Estado com a população indígena. E das políticas indigenistas mais ou menos equivalentes em todos os governos pós-ditadura militar, exceto o atual. Os indígenas perdem o domínio das terras que lhes são reconhecidas, e do próprio ambiente: seu único direito de contestar a exploração, diz o projeto, incide sobre o garimpo primitivo. Para o mais, devem satisfazer-se com a retribuição financeira admitida pelo empreendimento.
Isso é de uma radicalidade feroz como poucas vezes terá sido, se alguma vez o foi, em disposição de governo. Daí não se pode esperar senão um processo ainda mais celerado e acelerado de extirpação da cultura indígena. E de vidas que a têm sustentado, apesar da pressão de convívios forçados e dissolutos.
Esse projeto pode explicar uma das motivações básicas da ligação de velhos militares a Bolsonaro, exibida desde a campanha eleitoral pelo general Villas Boas, então comandante do Exército e hoje conselheiro do governo. Na primeira década da ditadura, anos 1970, a questão indígena recebeu relevância nas Forças Armadas e, por indução delas, na imprensa. De elaborações simplistas, surgira o delírio de que estrangeiros –sobretudo os Estados Unidos– ambicionavam apossar-se da Amazônia, e a maneira de evitá-lo seria difundir a ocupação econômica da região.
Uma fantasia precursora da ministra Damares Alves, pois: acaba-se com a riqueza florestal da Amazônia e sua importância para o mundo, e ninguém mais desejará possuí-la. A teoria ainda prevalece. E cumpre mais um papel.
Por décadas, a obsessão foi a guerra com a Argentina. O general Amaury Kruel, contei aqui há muitos anos, recebeu uma de suas promoções pelo plano de Estado-Maior que fez para o caso dessa guerra. O Rio Grande do Sul tornou-se uma concentração de recursos do Exército e da FAB por causa da obsessão. O primeiro porta-aviões, Minas Gerais, ruína inglesa que acabou custando uma loucura monetária, foi comprado porque a Argentina tinha o seu. Com o presente, Juscelino apagou a ira golpista na Marinha. Com as crises econômicas, a Argentina perdeu a posição onírica para a Amazônia.
Outro indicador da origem e da impulsão atual do projeto anti-Amazônia: é claro que não foi ocasional a simultaneidade entre a proposta mandada ao Congresso e o vazamento de um alegado estudo contra intenções hostis da França para a Amazônia. Estão vendo? Precisamos ocupar a nossa Amazônia –e, quem sabe, talvez também a de vizinhos– antes que algum aventureiro o faça, como já disse nossa pobre história. Mas não se pode dizer que o “estudo militar” seja medíocre: não passa de idiota.
Também dos últimos dias, a Mensagem ao Congresso é uma combinação de mentiras e cinismo. Entre elas, a dedicação do governo à sustentabilidade ambiental. Ao que me consta, jamais um governo ousou propor um projeto tão obstinado e minucioso contra o meio ambiente, a vida como criação da natureza e o conjunto do país. Nenhuma reação internacional, seja onde e qual for, será desproporcional ou surpreendente.