Ontem, completam-se 40 anos de um fato histórico que abalou Brasília: a morte do jornalista Mário Eugênio. Ele era um verdadeiro mito da reportagem policial e denunciava um esquadrão da morte no DF
Mário Eugêncio escrevia no "Correio Braziliense" e tinha um programa diário da Rádio Planalto AM, o "Gogó das Sete", líder de audiência.
Em 1984, no último ano da ditadura, ele teve coragem de denunciar um Esquadrão da Morte montado por militares do Exército e policiais do DF, que praticavam crimes diversos.
Mário Eugênio acabou recebendo um tiro de escopeta na cabeça e outros cinco tiros no corpo. Foram disparados pelo atirador de elite conhecido nos meios policiais como Divino 45.
Perto da meia-noite de um domingo, Marão saía do Setor de Rádio e TV Sul de Brasília, após gravar seu programa de rádio. No térreo, enquanto abria a porta do carro para ir embora, foi atacado por indivíduos em dois veículos da segurança pública.
Este colunista, à época estudante de Jornalismo no CEUB, era um ouvinte do programa. Acompanhou o noticiário pelo que a equipe do "Correio Braziliense" divulgava - embora, naquela época, não se soubesse tanto dos bastidores.
Hoje, sabe-se que a investigação do crime se deu pelos jornalistas do "Correio". Rendeu perseguições, ameaças de morte e um trabalho de abafa por parte das autoridades da Secretaria de Segurança do DF e do Exército. Mas também rendeu um Prêmio Esso Nacional à equipe do jornal (o maior prêmio do Jornalismo brasileiro) e o Prêmio Herzog de Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo.
Toda essa história, rica em detalhes, está contada por um dos mais envolvidos em toda a apuração e resolução do crime, o jornalista Renato Riella. Então secretário-executivo de Redação do "Correio Braziliense", ele chegou no local do crime quando Mário Eugênio ainda sangrava.
"Brasilianas" reproduz o relato de Riella na versão digital da coluna. Leia, abaixo, a íntegra do texto:
História de Brasília
40 anos da morte de Mário Eugênio
por Renato Riella
Neste dia 11 de novembro de 2024, completam-se 40 anos de um fato histórico que abalou Brasília: a morte do jornalista Mário Eugênio, verdadeiro mito da reportagem policial do Correio Braziliense e da Rádio Planalto.
Em 1984, no último ano da ditadura, ele teve coragem de denunciar um Esquadrão da Morte montado por militares do Exército e policiais do DF, que praticavam crimes diversos.
O famoso repórter acabou recebendo tiro de escopeta na cabeça e cinco tiros no corpo. Foram disparados pelo atirador de elite conhecido nos meios policiais como Divino 45.
Perto da meia-noite de um domingo, Marão saía do Setor de Rádio e TV Sul de Brasília, após gravar seu programa de rádio. No térreo, enquanto abria a porta do carro para ir embora, foi atacado por indivíduos em dois veículos da segurança pública.
O técnico de som Chiquinho, única testemunha do crime, segundos depois ligou para minha casa, me dizendo: “Acabaram de matar Mário Eugênio”.
Voei para lá. Cheguei antes da polícia, vendo o corpo do amigo estirado, sangrando.
A redação do Correio era chefiada pelo diretor Ronaldo Junqueira, pelo editor-geral Fernando Lemos e pelo secretário-executivo Renato Riella (eu). Agíamos com absoluta união e acompanhamos o trabalho da perícia da Polícia Civil no local do crime, já nos preparando para a investigação.
Minutos depois, já passada a meia-noite, chegou o irmão de Ronaldo (Randal Junqueira), que felizmente tinha uma máquina fotográfica no carro. Ele fez a única foto do crime, que acabou literalmente publicada em jornais de todo o mundo (até da China).
Fui para a redação do Correio para mudar a primeira página (a manchete era sobre Maluf, candidato a Presidente. Ficou assim: MATARAM MÁRIO EUGÊNIO.
Chorando oceanos de lágrimas e tirando os óculos, fiz 30 linhas informando sobre a morte do meu amigo Marão. E já apelei: disse claramente na primeira página que o grande repórter estava investigando crimes dos policiais do DF e vivia ameaçado.
Era o início de uma guerra assustadora, que começou com toda a redação chorando durante alguns dias – sem coragem de desmontar a mesa poderosa do valente jornalista morto.
Quem era Mário Eugênio
Mário Eugênio não tinha medo de morrer. Aos 31 anos, sem mulher nem filhos, vivia a fama de grande repórter policial. Em 1984, era a personalidade mais famosa de Brasília. Dava autógrafos nas ruas em todas as nossas cidades.
O DF parava todo dia às 7h da manhã para ouvir o seu programa na Rádio Planalto, de alto impacto, chamado Gogó das Sete.
Incomodava muita gente e chegou a sofrer atentados. Num deles, teve o carro baleado por um ex-agente de polícia.
Um dia, a jornalista Aurea Varjão advertiu Marão de que estavam querendo matá-lo. Ele reagiu da forma esperada: “Tenho o corpo fechado!”
Mário não estava disposto a interromper reportagens contra grupos de extermínio que funcionavam no DF e no Entorno, comandados pelos agentes de mais alto nível da Polícia Civil e membros do Exército da ditadura.
Os principais policiais de elite do DF e militares do Exército haviam montado uma quadrilha para roubar e exportar veículos. Usavam jovens para praticar os furtos. Depois, matavam esses rapazes. Muitos corpos apareciam baleados no cerrado, em cidades do Entorno, sem investigação.
Era o “Esquadrão da Morte de Goiás”, mas na verdade instalado no DF.
Marão começou a investigar a partir das informações das famílias dos adolescentes assassinados. Passou a denunciar gente muito perigosa, que ele conhecia muito bem. Por isso foi morto. A barra era pesada demais.
Crime foi previsto
Vale lembrar que o famoso repórter foi prevenido algumas vezes pela jornalista Áurea, que tinha pouco mais de 20 anos e vivia de tênis, calça jeans, trabalhando como repórter do Correio Braziliense.,
Era muito ligada a Mário Eugênio, que até fez para a amiga uma musiquinha de brincadeira, que cantava aos brados na redação, com a seguinte letra: “Ai, Áurea Varjão, pega o Marão e leva pro Partidão, ai, Aurea Varjão” (era uma paródia daquela música “Ai, Minas Gerais!”
Nas coberturas jornalísticas diárias para o Correio, Áurea encontrava sempre o então secretário de Segurança Pública, coronel Lauro Rieth, que mandou por ela ameaças para Mário Eugênio.
Por isso, na redação, em três oportunidades, nós prevenimos o repórter/radialista mais famoso de Brasília, verdadeiro ídolo da população, sobre os riscos que estava correndo.
A direção do Correio Braziliense chegou a mantê-lo, durante algumas semanas, morando no San Marco Hotel - até que ele se cansou da reclusão. Resolveu voltar para seu apartamento na Asa Norte.
Acabou fuzilado por um comando da Polícia Civil e do Exército, num domingo às 23h57, quando saía do prédio da Rádio Planalto em direção à sua casa, exatamente há 40 anos.
A testemunha
Meses depois, o assassinato já havia sido investigado e esclarecido por nós, os jornalistas do Correio Braziliense.
Foi quando Áurea Varjão passou por outra experiência inesquecível. Haveria a audiência de acusação dos criminosos no Tribunal de Justiça do DF. Decidimos que ela seria a primeira testemunha.
Mãe solteira, miudinha, era pura fragilidade. Tremeu, ficou noites sem dormir, mas faria qualquer coisa por Mário Eugênio vivo (imaginem por ele morto!)
O diretor de redação, Ronaldo Junqueira, percebeu que a testemunha poderia não ser levada a sério. Era preciso ampliar a credibilidade da garota brincalhona - mas corajosa.
Fizemos então uma reforma completa no visual de Áurea Varjão. Escova no cabelo, maquiagem pesada, óculos escuros, salto alto, terninho preto de executiva e um ar misterioso de Greta Garbo do cerrado.
E assim, Áurea Varjão foi ao Tribunal, acompanhada pelo advogado Aidano Faria, a quem devemos apoio jurídico nas investigações feitas pela redação.
Sem vacilar, a jovem repórter contou em detalhes como o coronel Lauro Rieth anteviu o atentado que acabaria com a vida de Marão meses depois. A poucos metros de distância, olhando cara a cara para ela, estavam os matadores, liderados pelo agente Divino 45 e pelo Sargento Nazareno.
Aurea lembra hoje que o próprio juiz Smaniotto (hoje desembargador aposentado) ficou admirado da sua coragem e lhe dava força para falar.
Situações de horror
Foram tempos de horror para todos nós, durante muitos meses, em 1985.
Nelson Pantoja, inesquecível repórter, também correu riscos no Caso Mário Eugênio. Pagou o preço de ter o carro com quatro pneus furados na Asa Norte. E os nossos fotógrafos sofriam ameaças nas ruas.
Carlos Honorato, hoje blogueiro no DF, recebeu estranha “visita” em casa, que remexeu papeis e roupas à procura de qualquer coisa.
Ronaldo Junqueira chegou a ser condenado pela Justiça por ter escrito um artigo contra o secretário Launo Rieth - quando este ainda estava com plenos poderes.
Até o promotor Paulo Tavares, designado para acompanhar o caso, teve de colocar um bina no telefone de casa, porque os criminosos viviam lançando ameaças sobre sua família.
Todos nós recebíamos ameaças telefônicas constantes. Combinamos a seguinte resposta: “Vocês não perceberam que erraram ao matar um jornalista. Agora vão ter de matar mais de cem!”
Os bandidos ou desligavam ou xingavam a gente. Este foi o espírito do editorial que Ronaldo Junqueira publicou no dia do crime, abaixo da minha notícia do assassinato, sob o título: “Ele morreu. Nós, não”.
Há muitos outros episódios assustadores; no meu caso, especialmente. Na verdade, irresponsável comigo mesmo, aceitei ser o porta-voz das investigações. Com isso, tinha de tomar cuidado dobrado para não me pegarem.
Mesmo assim, às segundas-feiras (14h), eu dava entrevista coletiva à imprensa nacional e internacional, mostrando como avançavam as nossas investigações - feitas à revelia das polícias.
Na casa onde morei, no Lago Sul, um dia apareceu fusca branco com dois homens, às 10h da noite.
Um vizinho militar chamou a Polícia Militar, que identificou os indivíduos, mandando-os embora depois. No dia seguinte, apurei que o carro e os documentos apresentados por eles eram frios. Os caras estavam na minha tocaia.
Noutra vez, no pátio do jornal, um outro fusca branco suspeito foi localizado, numa tarde qualquer. Acompanhei os colegas Carlos Honorato e Cláudio Lysias na abordagem a esse veículo. O motorista desconversou e de repente saiu voando pelo portão do jornal.
A sorte é que a recepcionista, já habituada às ameaças, havia conseguido anotar a carteira de identidade do invasor; que tinha entrado a pé no prédio antes.
Dias depois, o diretor Ari Cunha denunciou, na sua coluna, que se tratava de um sargento do Exército. Este foi transferido as carreiras para o Nordeste, para não se comprometer.
Dezenas de pessoas na redação do Correio Braziliense tiveram participação ativa na campanha para esclarecer o assassinato. Lembro do hoje jornalista e empresário Orlando Pontes, que na época era um jovem estagiário. Coube a ele mandar fazer quatro faixas de pano para uma passeata realizada no auge das nossas investigações.
Orlando ajudou na convocação de cerca de 80 pessoas do Correio, inclusive chamando os mais velhos jornalistas da redação (até o colunista social Gilberto Amaral foi).
Em plena ditadura, saímos do jornal a pé, às 13h. Fizemos um panelaço em frente ao Tribunal do DF, pedindo justiça para o Caso Mário Eugênio e gritando o refrão: “Rieth é Pinochet!”
Centenas de pessoas apareceram nas janelas do TJDF para nos apoiar com palmas ou gestos, jogando papel picado do alto. Emocionante! De chorar!
A passeata, composta por colunistas, velhos jornalistas da política, fotógrafos, secretárias, estagiários, repórteres, chefes de redação e muitos outros profissionais, foi até o Palácio do Buriti, onde entregamos um amplo dossiê, preparado por mim, sobre as nossas investigações.
O resultado é que ocupamos espaço na TV Globo e na mídia nacional.
Denúncias falsas
Foram esforços diversos para manter viva a chama. Tudo era apurado por nós mesmos, sem a participação da polícia. Tivemos uma infinidade de denúncias falsas, possivelmente plantadas pelos bandidos.
Um caso típico envolveu o editor-geral Fernando Lemos, meu principal parceiro nas investigações. Ele recebeu telefonema de um homem disposto a esclarecer tudo sobre a morte de Marão.
Armados apenas com coragem, fomos até a 310 Norte. Combinei que me aproximaria pela frente do indivíduo e Fernando por trás. Já bem pertinho, meu grande amigo (hoje falecido) gesticulou para que não parássemos, porque o “informante” era notoriamente um maluco.
Passamos sete meses infernais, que considero apagados da minha vida, pois só vivia o Caso Mário Eugênio. Era uma questão de vida ou morte - e não achávamos que tínhamos corpo fechado! Pelo contrário, nenhum de nós usava revólver.
A sorte é que conseguimos importar quatro jornalistas experientes em polícia, vindos de Goiânia, que assumiram o dia a dia da reportagem. O reforço trouxe Carlos Honorato e José Luiz Oliveira (hoje falecido); Conceição Freitas, atualmente cronista do Correio Braziliense, um raro exemplo de repórter policial feminina de alta qualidade; e Hamilton Almeida (também já falecido”).
Vale lembrar que policiais, abertamente, ameaçaram Conceição numa delegacia. Eles não desistiam. E ela, claro, não afrouxou.
E assim, com Honorato na chefia de uma recém-criada editoria de Policia, as coisas foram evoluindo, porque as áreas mais diferentes da cidade começaram a se solidarizar com a gente. Não podemos dizer o mesmo do Sindicato dos Jornalistas, que na época só acreditava em quem fosse comunista de carteirinha.
Nossos líderes sindicais demoraram um pouco para se engajar na luta (com exceção de Davi Emerich, que era muito amigo de Marão).
Certamente se surpreenderam, tempos depois. Souberam que, graças ao nosso trabalho, conseguimos desmontar em todo o Brasil os Pelotões de Investigações Criminais do Exército (os PICs). Não custa nada lembrar que Wladimir Herzog. por exemplo, foi morto num PIC, em São Paulo. E Mário Eugênio acabou como a última vítima da ditadura.
Prêmio Esso
Nessas memórias esparsas, registro que muita gente me considerou ingênuo quando resolvi inscrever a nossa série de reportagens no Prêmio Esso de Jornalismo.
Paguei do meu próprio bolso as cópias xerox ampliadas de 80 páginas selecionadas das nossas reportagens, que começavam com a primeira manchete (“Mataram Mário Eugênio”) e terminavam com a decisiva denúncia (“Eles mataram Mário Eugênio”).
Intimamente, também não acreditava que fôssemos vencer o mais importante concurso de jornalismo do Brasil (verdadeiro Oscar), que nunca havia premiado publicações fora do eixo Rio-São Paulo.
Mas não só ganhamos o Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, como vencemos, semanas depois, o importantíssimo Prêmio Herzog de Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo.
Como prêmio inesperado, a revista Playboy fez uma entrevista de seis páginas comigo, contando como os jornalistas de Brasília haviam conseguido lutar contra a Polícia e contra o Exército (foi em 1985, edição que tem Luiza Brunet na capa) Tempos depois, a TV Globo fez também um Globo Repórter.
Vale a pena confessar que preferi não acompanhar Ronaldo Junqueira, Carlos Honorato e Fernando Lemos nas solenidades de recebimento desses dois respeitados prêmios de jornalismo, no Rio e em São Paulo.
Não usava nunca paletó e, além do mais, havia recuperado a normalidade. Minha vida foi interrompida no dia 11 de novembro de 1984, quando vi o corpo de um grande amigo jornalista, ainda quente, explodido por tiro de escopeta.
Finalmente podia soltar a respiração!
Mário Eugênio passou a ser a lembrança de uma grande luta. Loucos por justiça, não cedemos diante das ameaças mais aterrorizantes.
Enfrentamos a cúpula da Policia Civil e desafiamos um pelotão de torturadores do Exército, que graças a todos nós ficaram alguns anos na cadeia.
E houve grave mudança na Secretaria de Segurança Pública do DF, que passou por profundas mudanças, sendo hoje modelo nacional.