Em 100 dias de guerra, Biden faz Putin virar vilão até de inflação e tenta refazer pontes
Por: Rafael Balago
Quando encerrou a ocupação do Afeganistão, em agosto de 2021, o presidente Joe Biden deixou claro que a reorganização militar serviria para se concentrar em desafios maiores, citando a competição com a China. A Rússia ganhou então uma menção secundária. Pois cem dias atrás, a ação de Vladimir Putin na Ucrânia forçou um novo rearranjo de foco na política externa americana.
A Guerra Fria 2.0 com Pequim continua, mas o apoio de Washington a Kiev teve poucos paralelos na história recente dos EUA. O país já aprovou mais de US$ 54 bilhões em equipamentos militares e outros auxílios, ao mesmo tempo que lidera esforços para convencer outros governos a se colocar contra Moscou. Biden anunciou ainda várias rodadas de sanções, que definiu como as mais duras já adotadas.
Ao mesmo tempo, o presidente busca deixar claro que não quer um conflito direto com a Rússia –uma Terceira Guerra Mundial, em outras palavras. Nesta semana, repetiu que não pretende deslocar tropas americanas, tampouco tentar derrubar Putin ou atacar a Rússia, mas disse que manterá a estratégia de enviar armas de ponta para Kiev e tentar sufocar a economia russa.
O esforço americano é marcado por gestos simbólicos. Em Washington, as cores da bandeira da Ucrânia são exibidas em fachadas, e tulipas azuis e amarelas foram plantadas no jardim em frente à Casa Branca. Em março, Biden foi à Polônia, a poucos quilômetros do front. A primeira-dama Jill esteve numa cidade ucraniana no Dia das Mães. E o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, discursou por vídeo para o Congresso dos EUA, rara ocasião em que o plenário parou para ouvir um líder estrangeiro.
Em tempos de polarização interna, a guerra deu a Biden um inimigo claro e uma causa para tentar unir os americanos e a comunidade internacional, mas o resultado foi díspar. Ele reaproximou os EUA da Europa, mas se distanciou mais ainda da China. Na política interna, até teve apoio republicano para defender a Ucrânia, mas vê o impasse renhido continuar em assuntos como o controle de armas –e sua popularidade continua estagnada.
Americanos e europeus anunciaram várias medidas em conjunto contra a Rússia e de apoio à Ucrânia, e Biden viu com bons olhos a ampliação da Otan, aliança militar que os EUA lideram, com o processo de adesão de Suécia e Finlândia. O democrata também teve a chance de mostrar a retomada americana no multilateralismo –sob Donald Trump, o país reduziu a presença em fóruns e tratados como o Acordo de Paris e partiu para ações unilaterais, como a guerra comercial com a China, em vez de tentar a mediação de organismos como a OMC.
A pressão dos EUA sobre a Rússia veio também em arenas internacionais, especialmente no âmbito da ONU. Moscou tem poder de veto no Conselho de Segurança, mas Washington buscou vitórias simbólicas, como a condenação da invasão na Assembleia-Geral, aprovada por 141 votos em março, para demonstrar o isolamento de Putin. O Brasil votou a favor da resolução e recebeu elogios americanos por isso.
Nesse contexto, a Rússia ainda pode contar com potências como China e Índia, que ora adotam neutralidade nos fóruns das Nações Unidas, ora criticam as sanções ocidentais. A economia russa se mantém aos trancos e barrancos, e o rublo se valorizou em 15% nos últimos dois meses. Uma das razões é que inclusive a Europa continua a comprar petróleo e gás de Moscou –um embargo parcial, a ser implantado nos próximos meses, foi acertado nesta semana.
Com o peso da guerra na economia global, para o público americano Biden passou a usar a Rússia como espécie de bode expiatório para a inflação, seu principal problema econômico. Até em comunicados oficiais a questão passou a ser chamada de "Putin hike prices", escalada de preços de Putin, enquanto a oposição prefere falar em "Bidenflation" (bidenflação).
"Por causa da guerra de Putin, menos petróleo chega ao mercado, e a redução da oferta eleva os preços na bomba para os americanos", disse a Casa Branca em um anúncio de medidas contra a alta de preços. Ainda assim, Biden reconhece que parte das dificuldades é reflexo das próprias sanções americanas –ele então busca convencer os americanos de que "liberdade não é grátis".
Pesquisa de The Washington Post e ABC News no fim de abril mostrou que 80% dos americanos temem que a Guerra da Ucrânia possa avançar para outros países da Europa e que forças americanas acabem se envolvendo –e 70% receiam que as sanções possam continuar pressionando os preços nos EUA.
Entre gafes diplomáticas, esforços internacionais de união e desafios internos, a aprovação de Biden não deixou a casa dos 40%. O índice, que se mantém abaixo de 50% justamente desde a saída caótica das tropas americanas do Afeganistão, ameaça o desempenho democrata nas "midterms", eleições que em novembro vão renovar parte do Congresso e podem acabar com a maioria estreita pró-governo.
A defesa da Ucrânia é das únicas iniciativas de Biden a amealhar apoio bipartidário. Até aqui. Em maio, quando o Congresso aprovou o envio de mais US$ 40 bilhões em equipamentos militares e outros auxílios a Kiev, no Senado o placar foi de 86 a favor e 11 contra –todos republicanos.
O partido tem no ex-presidente Donald Trump, ainda de larga influência, um dos principais críticos da ajuda ao país do Leste Europeu. "Se os EUA têm US$ 40 bilhões para enviar para a Ucrânia, deveríamos ser capazes de fazer o que for preciso para manter nossas crianças seguras", disse Trump, em discurso na semana passada, em que comentou um ataque a tiros em uma escola do Texas.
"Gastamos trilhões no Iraque e no Afeganistão e não conseguimos nada. Antes de construir nações no resto do mundo, devemos construir escolas seguras em nosso país", completou, buscando retomar o tom isolacionista que marcou seu governo –e que a Guerra da Ucrânia tem ajudado a desfazer.