Por: Cláudio Magnavita*

Documentos oficiais demonstram que a relação da Latam e VoePass vai além de um acordo comercial

Latam | Foto: Divulgação/Airbus

Dez dias depois, as famílias das vítimas do voo da morte começam a enfrentar uma dura realidade. O assunto perdeu protagonismo da mídia e, agora, começa a se pensar na questão indenizatória e na busca pelos culpados. Documentos oficiais demonstram que a relação entre a chilena Latam e a VoePass vai além de um acordo comercial. Neste cenário, a companhia segue se esquivando de assumir a responsabilidade solidária no acidente da Voepass que aconteceu em Vinhedo, há exatos dez dias. O voo contava com passageiros da Latam, que compraram seus bilhetes aéreos no site da empresa chilena, mas tiveram que embarcar no avião da empresa de Ribeirão Preto (antiga Passaredo), por conta de voos de conexão entre as partes.

O cerne do problema é exatamente a relação de negócios entre a Latam e a Voepass. Uma parceria que vai muito além de um mero compartilhamento de voos, como comprovam documentos que a Coluna Magnavita teve acesso. O processo sobre o ato de concentração entre a Latam e a Voepass tem natureza pública e os documentos públicos apresentados ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) podem ser consultados na pesquisa processual, disponível no site da autarquia (Processo nº 08700.001578/2024-83).

O documento deixa claro que a cooperação entre as empresas aéreas é bem mais ampla e profunda do que um simples codeshare - prática comum entre companhias do setor - como a Latam tem tentado transparecer. A parceria, inclusive, é vista no mercado como essencial para o futuro da companhia regional que passa por crise financeira e endividamento notórios.

A negociação foi aprovada pelo Cade em acordo datado do dia 17 de abril, mas o montante financeiro e valores são confidenciais. Todavia, as informações públicas apontam para uma parceria mais abrangente do que tem sido noticiado e defendido pela Latam. Acordo este que foi mantido entre as companhias, mesmo após a queda do avião ATR 72.

De acordo com o documento público, a operação entre Latam e Voepass consiste em:

Troca de slots: Permuta, permanente e definitiva, de 10 pares de slots[1] aeroportuários no aeroporto de Congonhas/SP entre a Latam e VoePass, na proporção um para um, não incorrendo em alteração no número de slots de cada Parte. A troca deverá ser convalidada e atestada como troca definitiva pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC);

Celebração de contrato operacional entre as Partes: celebração de contrato que substituirá os atuais acordos de codeshare[2] entre as Requerentes e expandirá a parceria operacional entre elas. A nova parceria entre as Partes incluirá:

Compartilhamento de códigos (codeshare) entre as Requerentes para a malha doméstica da VoePass, tendo a LATAM como marketing carrier e VoePass como operating carrier;

Fornecimento firme de capacidade, pela VoePass à Latam, em até 70% das rotas da VoePass, com comercialização exclusiva pela Latam e operação exclusiva pela VoePass em determinadas rotas. A VoePass será previamente remunerada pelos assentos disponibilizados, enquanto a Latam terá autonomia para determinar e publicar as tarifas e regras tarifárias para a totalidade dos assentos das aeronaves envolvidas; e

Possibilidade de assistência técnica e outras atividades a serem prestadas pela Latam destinadas à redução de custos da VoePass.

Emissão de debêntures conversíveis e opções de compra: emissão de debêntures conversíveis (ou outro instrumento de dívida conversível) pela VoePass, que conjuntamente com opções de compra de participações societárias, darão direito à Latam de converter seu investimento em até 30% das ações representativas do capital social total e votante da VoePass e de sociedades a ela afiliadas.

O acordo relata também que "assim, considerando as atividades informadas pelas Requerentes, a Operação poderá potencialmente gerar duas relações verticais: (i) transporte aéreo regular de passageiros da VoePass e as atividades de agências de viagem da Latam; e (ii) transporte aéreo regular de passageiros da VoePass e as atividades de programas de fidelidade da Latam".

Ou seja, tanto nas atividades de agência de viagem e programa de fidelidade da Latam, o passageiro que voa no avião da Voepass pode utilizar os serviços da empresa chilena e também somar pontos e milhas, mas no caso de um acidente fatal, com passageiros que compraram bilhetes aéreos no site da empresa chilena, a Latam pode simplesmente se eximir de qualquer responsabilidade solidária?

Não estamos falando de uma simples indenização por extravio de bagagem, overbooking, atrasos ou cancelamento de voos. Estamos falando de vidas que foram ceifadas e famílias que foram destruídas no trágico episódio.

O fato é que a Latam vendeu em seu site os assentos para o fatídico voo, o que a torna corresponsável pelo serviço prestado. Os familiares das vítimas têm o direito de buscar tal responsabilização de uma das empresas, ou de ambas. O bilhete comprado no site da Latam abre a prerrogativa do acionamento da empresa na justiça.

A Latam tenta passar despercebida em um incidente que vitimou vários de seus clientes, que compraram passagens confiando na tradicional empresa aérea e ficaram reféns de um acordo de compartilhamento de códigos que a empresa chilena tenta minimizar, mas que ao mesmo tempo gera lucro com ampliação de sua malha aérea na aviação regional.

O setor aéreo preza pela segurança e tem regulação específica. É hora da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Ministério dos Portos e Aeroportos, Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e outros órgãos correlacionados atuarem em conjunto para que a corda não arrebente apenas para o elo mais fraco - a pequena e endividada VoePass.

 

*Diretor de Redação do Correio da Manhã