Rascunhos anônimos, sem fé pública, não podem servir como base para procedimentos do MP
Por estar baseada em relatórios apócrifos gerados dentro da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro, que serviram como base para a atuação do Ministério Público do Estado do Rio, uma decisão judicial declarou a nulidade do Procedimento de Investigação Criminal (PIC) nº 3/2016, emergindo um forte indício de um esquema unificado de produção de dossiês falsos com o objetivo de atingir interesses pessoais. Esse indício se fortaleceu diante das respostas apresentadas pela atual gestão da Secretaria de Fazenda a questionamentos de diversas pessoas físicas e jurídicas que passaram a responder a ações penais tributárias. Essas respostas indicam que não é possível afirmar que os relatórios foram efetivamente elaborados dentro do próprio órgão de inteligência e que não há registros de autoria e nem a matrícula funcional dos seus autores.
nA história do uso de relatórios apócrifos na Administração Pública não é recente. O uso de documentos anônimos afeta não apenas cidadãos comuns, mas também altos cargos da Administração Pública, comprometendo a transparência e a moralidade administrativa. É um fenômeno que subverte a relação de confiança entre o Estado e seus cidadãos, ao expô-los ao risco de perseguições infundadas.
nNão se deve confundir a ferramenta da denúncia anônima com a elaboração de documentos ou relatórios em papel timbrado de um órgão, utilizando as ferramentas de acesso e o seu texto final conter graves acusações, sem que o autor da pesquisa, texto ou apuração assuma a responsabilidade da autoria ou dê, com assinatura, fé pública, as peças produzidas como oficiais. Sem assinatura ou autoria são meros rascunhos que não deveriam embasar processos investigativos contra contribuintes.
nO impacto dessa prática é significativo e atinge também os princípios que regem o processo penal. O Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou em diversas decisões que a ausência de formalização e registro dos responsáveis pela elaboração do relatório acarreta a nulidade do ato e a ilicitude das provas dele derivadas. Isso se justifica pela necessidade de proteger os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurando a transparência e a legalidade no âmbito da persecução penal.
nA decisão judicial, a qual o Correio da Manhã teve acesso, através de fontes ligadas ao judiciário, que reconheceu a nulidade do PIC nº 3/2016, foi proferida pelo juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, da 3ª Vara Criminal Especializada, em 15 de julho de 2024. Na decisão, o magistrado invocou a jurisprudência do STF, que estabelece que "na questão de crimes materiais contra a ordem tributária, ninguém pode iniciar uma investigação até que a Receita [...] não lance em definitivo o tributo", sendo necessária a formalização do ato.
É imperativo que o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira ocorra de forma formalizada, conforme as diretrizes do STF no Tema 990. Tal orientação visa impedir o anonimato e assegurar que o envio e o recebimento de relatórios sejam documentados e formalizados. Essa prática tem por objetivo proteger as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
nA conclusão é alarmante e desafiadora: a utilização de relatórios apócrifos compromete a legitimidade da atuação estatal e viola os princípios constitucionais da publicidade, impessoalidade e moralidade. A prática de utilização de documentos anônimos, que aparentam veracidade devido ao uso do timbre estatal, reforça a necessidade de um controle mais rigoroso sobre a produção e o uso de tais informações. Sob pena de afronta ao Estado Democrático de Direito, essa prática pode levar à destruição da vida de pessoas inocentes e ao abalo da confiança pública nas instituições.
nA reforma da Administração Pública e a fiscalização sobre os órgãos de inteligência e controle devem ser priorizadas. A busca por maior controle e fiscalização é indispensável para que o Estado não se torne um agente opressor de seus cidadãos de bem. Apenas dessa forma será possível preservar a integridade das garantias constitucionais, a dignidade da pessoa humana e a moralidade na Administração Pública. No caso da Secretaria da Fazenda do Rio, há indícios de vários contribuintes que estão sendo processados e denunciados ao MPRJ, e, em alguns casos, vítimas de busca e apreensão, por relatórios que simplesmente brotaram por osmose nos núcleos de inteligência da SEFAZ e foram encaminhados ao MPRJ, através de uma conexão entre as duas instituições realizada por um profissional híbrido, que até pouco tempo usava a sua senha da Fazenda para acessar dados dos contribuintes, apesar de estar cedido ao Ministério Público.
nA decisão de nulidade proferida pelo juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, da 3ª Vara Criminal Especializada, é histórica e corajosa, podendo firmar jurisprudência em dezenas de processos investigativos baseados em relatórios apócrifos e usados como ferramenta de vingança ou perseguição.
*Diretor de Redação do Correio da Manhã