Crônica de uma tragédia anunciada
Bandidos milicianos controlam Rio das Pedras e bandidos traficantes controlam a vida dos moradores da Cidade de Deus. A UPP da Cidade de Deus foi desintegrada. A guerra entre essas comunidades aterroriza diariamente os moradores. Bandidos contra bandidos para tomar territórios.
A semana passada foi devastadora. Não falo da guerra no Oriente Médio, mas da nossa guerra particular, da pandemia da violência nas grandes cidades brasileiras.
Uma cena gravada pela câmera de vídeo da Av. Sernambetiba (atual Lucio Costa) registra a crueldade e frieza de assassinos num ataque infame a 4 médicos ortopedistas que relaxavam na mesa de um quiosque após um dia de trabalho com colegas ortopedistas em um congresso dessa área médica.
O Brasil inteiro se chocou com cenas de uma execução covarde. E o mais dantesco: os mandantes enfurecidos com o erro do alvo, e a repercussão midiática, executam os executores. Nem o cineasta Tarantino construiria tal sequência mórbida.
Rio das Pedras é uma comunidade entre a Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Tem uma formação de migrantes nordestinos, fluminenses e de outras regiões do país. Povo trabalhador. Que trabalha para a classe média e a burguesia da cidade. Sofrendo diariamente com o transporte coletivo e passando horas do seu dia no vai e vem do trabalho/casa. Muitas famílias chefiadas por mulheres sozinhas que carregam suas famílias nas costas. Deixam seus filhos com o coração aflito para o trabalho.
Rio das Pedras foi constituída pelo suor desses migrantes. O solo de Rio das Pedras é frágil. O aterramento precário às margens das Lagoas da Barra e Jacarepaguá gera transtorno em épocas de chuvas.
Rio das Pedras é controlada há décadas pela milícia. Ela cobra serviços e taxas para "proteger" a comunidade. Ai do morador ou da moradora que não pague pelos serviços…morre!
Mas não para aí. A conduta de cada morador é observada pelos bandidos milicianos. Não se comportou bem, morre!
Sua vizinha é a Cidade de Deus. Milhares de trabalhadores lá vivem. Foi inspiração do premiado filme brasileiro Cidade de Deus, do cineasta Fernando Meirelles, baseado no livro do escritor carioca Paulo Lins.
O filme registra a remoção autoritária de favelados moradores de favelas da zona sul da cidade para a nova área de moradia, a Cidade de Deus, na zona oeste da cidade.
As mazelas estão lá no filme, escancaradas. A vida de meninos e meninas numa comunidade marcada pelo controle armado violento e autoritário do tráfico de drogas. Uma vida sem lei e sem esperança.
Tenho outro filme na minha cabeça sobre a Cidade de Deus. É de 2009. Nosso governo leva lei, ordem e cidadania para a Cidade de Deus. Implantamos a UPP, Unidade de Polícia Pacificadora, da Cidade de Deus. Inauguramos a UPA-24h, creches, milhares de moradias foram construídas ou reformadas, Centro de Referência da Juventude, programas esportivos e culturais foram implantados por toda a comunidade.
Imagine o presidente Barack Obama e a primeira família dos Estados Unidos visitando a Cidade de Deus, em março de 2011. Trocando experiências com os moradores da comunidade. Visitando equipamentos públicos e assistindo a apresentações de crianças, adolescentes e jovens da Cidade de Deus. O presidente e a família adoraram! A população fez festa e o dia foi marcado como uma reinserção internacional de uma comunidade vista anteriormente pelo mundo através do belo e duro filme de Meirelles.
Shakira foi com a Xuxa visitar nossa creche, referência pela qualidade e tratamento às crianças. Dilma foi à Cidade de Deus, onde fizemos um lindo comício com a comunidade local.
Essas duas comunidades, compostas por trabalhadores, está sob o jugo e julgo de bandidos. Bandidos milicianos controlam Rio das Pedras e bandidos traficantes controlam a vida dos moradores da Cidade de Deus. A UPP da Cidade de Deus foi desintegrada. A guerra entre essas comunidades aterroriza diariamente os moradores. Bandidos contra bandidos para tomar territórios. E o poder público vem acompanhando essa guerra há meses. Muita gente já morreu nesses últimos meses. O controle armado nas ruas é ostensivo nas duas comunidades. O pavor está em cada rosto de morador.
Agora, essa tragédia com os médicos. Profissionais da profissão humana mais nobre executados num dos metros quadrados mais caros do país.
Se o poder público não entender que milhões de pessoas vivem, hoje, sob controle da milícia e do tráfico e que isso exige ação dura e permanente, policiamento nas comunidades e ações estruturais e sociais para a população trabalhadora, estaremos enxugando gelo.
Jornalista. Instagram: @sergiocabral_filho