Por: Sérgio Cabral*

O Brasil não é para principiantes

Precisamos aumentar o conhecimento histórico sobre a nossa nação e melhorar a própria consciência, de cada um de nós, para diminuir a bárbarie e o preconceito encrustado em nosso DNA. E, para modificar tal realidade atávica, precisamos ser radicalmente expostos ao que somos. | Foto: Clay Banks/Unsplash

O racismo disfarçado do Brasil tem situações em que pessoas são capazes de rejeitar a imputação de racistas ao dizer: "tenho até amigo preto". Ao longo da minha existência de 61 anos, às vésperas de completar 62, isso me provoca asco.

E assim segue-se ouvindo barbaridades. Ao descrever uma pessoa: aquela, sim aquela, e passa a mão no braço branco como a demonstrar que se refere a uma pessoa de cor preta. "Aquela moreninha…", como se fosse uma característica depreciativa do ser humano a cor preta e, por isso, "moreninha".

O Brasil foi o último país a libertar o povo preto da escravidão. Um marco pavoroso. Sugiro ao Ministério da Educação que adote a trilogia do escritor Laurentino Gomes, ESCRAVIDÃO, editada pela Globo Livros, para as alunas e alunos do ensino médio. Imperdível e imprescindível. Após a sua leitura, tenho certeza que o seu conhecimento histórico e a sua própria consciência irão ficar melhores, como fiquei; mesmo tendo sido educado e criado em uma casa antirracista, mesmo tendo sido presidente do legislativo estadual e condutor da primeira lei de cotas raciais nas universidades públicas, mesmo tendo sido o governador precursor da primeira lei de cotas em concursos públicos.

Infelizmente, a barbárie e o preconceito estão no DNA do Brasil. E, para modificar tal realidade atávica, precisamos ser radicalmente expostos ao que somos, para nos modificarmos em consciência coletiva e individual.

Vejo jornalistas, intelectuais e analistas políticos esclarecidos bombardearem as políticas identitárias, como se a população estivesse cansada desse assunto. Não é verdade! A maioria da população compreende e precisa ter líderes que saibam comunicar e defender tais bandeiras.

Quando presidente da ALERJ, fui autor, com Carlos Minc, da primeira lei no país a estender os direitos previdenciários aos parceiros homoafetivos e parceiras homoafetivas de servidores públicos falecidos. Me lembro bem da reação de parlamentares conservadores que foram para tribuna da ALERJ me ameaçar e afirmar que assim não me elegeria senador da república no ano seguinte, 2002. Pois fui o senador mais votado da história do estado do Rio, com 1 milhão de votos à frente do segundo colocado. Na eleição para governador, a mesma ladainha contra mim. Fui eleito com 70% dos votos no segundo turno, em 2006. A lei do direito previdenciário público aos casais homoafetivos ganhou outro status e se solidificou.

Quando fortaleci a lei de cotas raciais nas universidades, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro, com quem tenho até hoje uma relação civilizada, entrou na justiça para barrar a sua extensão para todos os anos da graduação e o aumento do valor da bolsa de apoio que eu havia decretado. Ganhou uma liminar, mas em seguida perdeu a luta judicial. Ao implementar a primeira lei de cotas para concurso público, em 2011, outra reação forte do establishment. Dessa vez, com as teses sórdidas de Ali Kamel, então poderoso diretor de jornalismo da Globo. Que publicou um livro, cujo título é: Não somos racistas. Até hoje não li seu pedido de desculpas por tal fascismo declarado.

Em maio de 2011, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. Iniciativa do meu governo por intermédio da Procuradoria do Estado. À qual se associou a Procuradoria da República. Tivemos uma vitória maiúscula e cidadã. Vale a leitura do voto histórico do relator, o então ministro Ayres Britto.

Lula e Haddad estão à frente de medidas para tornar o país um pouco mais equânime. Sem perder de vista o zelo fiscal, fundamental para as contas públicas e solvência do país. Tomaram uma medida importante que será ainda avaliada pelo Congresso Nacional e, consequentemente pelo STF, por despertar a ira dos setores atingidos. Ao deixar de tributar o imposto de renda aos que ganham até 5 mil reais, ok. Ninguém é contra. Mas para compensar tal justiça tributária, propõe aumentar a alíquota de quem tem renda direta ou indireta acima de 50 mil reais/mês. Mexeu no calo não só dos milionários, mas na classe média alta. Aquela que não é milionária mas trabalha para os milionários de alguma forma. Uma aliança quase imbatível no Brasil.

Bem, governar o Brasil não é fácil. Mas, como um atendente uma vez na Bahia me respondeu ao perguntar-lhe se havia misto quente na lanchonete: "tem, mas tem que fazer".

PS: que aula de bom futebol do glorioso Botafogo, em Buenos Aires! Só falta o meu Vasco…

*Jornalista. Instagram: @sergiocabral_filho