Por: Sérgio Cabral*

Meninos, eu vivi

Tancredo Neves, Sérgio Cabral (pai) e o cartunista Ziraldo | Foto: Arquivo pessoal

Depois de 20 anos de ditadura militar, o primeiro trimestre de 1984 foi eletrizante. A Proposta de Emenda Constitucional número 5, de 1983, ganhou a boca do povo como a emenda Dante de Oliveira.

Dante era um jovem político do Mato Grosso que, assim que assumiu o seu mandato de deputado federal pelo PMDB, apresentou a PEC nº 5 à então Constituição brasileira. A oposição se uniu em torno dela. Nos meses de janeiro, fevereiro, março e abril de 1984, o povo foi para as ruas sob o lema DIRETAS JÁ. Comícios gigantescos foram realizados na Candelária, no Rio, e no Vale do Anhangabaú, em São Paulo.

Porém, no dia 25 de abril de 1984, com a população brasileira grudada nos televisores para assistir à votação na Câmara dos Deputados, faltaram 22 votos para a emenda Dante de Oliveira ser aprovada; à frustração dos primeiros dias seguintes à derrota se deu uma grande articulação para o lançamento da candidatura de Tancredo Neves, então governador de Minas Gerais pelo PMDB, à Presidência da República pelo voto indireto do Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985.

Ulysses Guimarães, que seria o candidato natural, caso as eleições fossem diretas, logo se articulou com os governadores do PMDB para o lançamento de Tancredo, político de oposição mais moderado que poderia atrair setores conservadores de apoio ao regime militar. Na época havia cinco partidos no Brasil com representação parlamentar: PMDB, PT e PDT compunham a oposição, o PTB havia sido capturado pelo regime militar e estava dividido e o PDS, partido do regime.

O general presidente João Figueiredo, pouco afeito ao jogo político, mau humorado e sem carisma, apoiou o seu ministro do interior, coronel Mário Andreazza. Um militar de longa tradição reacionária e tido como um tocador de obras. Andreazza enfrentou na convenção do PDS, no dia 11 de agosto de 1984, o vice-presidente civil Aureliano Chaves e o deputado federal Paulo Maluf. Figueiredo não teve capacidade de manter a coesão do regime. E o resultado foi a vitória de Maluf, ex prefeito e ex governador de São Paulo, nomeado pela ditadura. Maluf usou métodos heterodoxos para seduzir os convencionais e venceu o coronel e Aureliano, que além de vice-presidente, havia sido governador de Minas Gerais, também nomeado pelo regime militar.

A vitória de Paulo Maluf gerou uma grande dissidência nos quadros do PDS. Aureliano Chaves, José Sarney, então presidente do partido, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, José Agripino Maia, o catarinense Jorge Bornhausen, Moreira Franco, entre tantos outros dissidentes, criaram a Frente Liberal, romperam com a candidatura de Maluf e apoiaram o candidato do PMDB, Tancredo Neves. E é lançada a Nova República, aliança da oposição com os dissidentes do regime.

A partir dali, com o forte apoio da mídia, foram realizados comícios e eventos de apoio a Tancredo Neves, o que deu uma grande roupagem popular ao candidato da oposição no Colégio Eleitoral.

No dia 15 de janeiro de 1985, houve a grande vitória: Tancredo/Sarney conquistaram 480 votos, enquanto a chapa Maluf/Flavio Marcilio obteve 180 votos. Massacre! Foi um delírio no Brasil. Festas por todos os cantos do país.

Entre a vitória e a posse, Tancredo liderou missões aos nossos principais parceiros no mundo, com o objetivo de já estabelecer as pontes políticas e diplomáticas com o novo governo que se iniciaria em 15 de março., data da posse.

Entretanto, Tancredo foi internado às vésperas da posse, com uma grave crise no divertículo. Foram horas de muita tensão para assegurar a posse de José Sarney, já que o general João Figueiredo e o ministro do exército, Walter Pires, não aceitavam a posse do ex aliado. Ulysses Guimarães, pela oposição, e o Chefe da Casa Civil de Figueiredo, Leitão de Abreu, pelo governo que saía, costuraram a garantia da posse de José Sarney.

Tancredo veio a falecer no dia 21 de abril de 1985, na mesma data de seu conterrâneo Tiradentes; dois heróis do Brasil.

José Sarney teve enorme responsabilidade na condução do Brasil para a solidificação da redemocratização. Convocou a Assembleia Nacional Constituinte e os deputados federais e senadores eleitos em 1986 se tornaram constituintes e elaboraram a Carta de 1988.

Jovem, participei de todos esses momentos, de perto. Como presidente da juventude do PMDB, estive no palanque da Candelária ao lado dos grande líderes nacionais da oposição; sob o comando de Aécio Neves, organizamos um gigantesco showmício no Recife, de apoio da juventude brasileira a Tancredo com os maiores nomes da cultura, do esporte e do entretenimento. Nas areias da Praia da Boa Viagem, mais de 300 mil jovens compareceram ao evento "Por um lugar ao sol". Aqui no Rio, assessorei meu pai na criação de um amplo Comitê de apoio a Tancredo Neves que ele presidiu, com João Saldanha de vice. O lançamento foi na Associação Brasileira de Imprensa, ABI, com a presença de Tancredo. No dia da vitória no Colégio Eleitoral, organizamos a festa em São João del Rey, cidade natal do presidente eleito, com a presença de Martinho da Vila, Leci Brandão, Geraldo Carneiro, entre outros. Foi um lindo showmício na terra dos Neves. Estava com os familiares de Tancredo no dia 14 de março, após irmos ao Santuário de São João Bosco, último evento público de Tancredo, na churrascaria do Lago, em Brasília, quando chegou a informação de que ele havia sido internado no Hospital de Base. Uma tristeza se abateu sobre todos, irmãos, filhos, netos, sobrinhos e amigos de Tancredo. No dia seguinte, a festa da posse no Palácio do Itamarati. Na verdade, de festa não tinha nada. Uma noite angustiante com Sarney constrangido e assustado nos salões do Itamarati. No dia seguinte fui com a minha então namorada, Susana Neves, mãe dos meus três filhos mais velhos, e seu saudoso pai, Gastão Neves, visitar Dona Risoleta Neves, esposa do presidente eleito, no Hospital de Base. Ela estava otimista com a saída de Tancredo em poucos dias. Mas, infelizmente, não foi assim. O quadro de saúde do presidente eleito se agravou, houve a transferência para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde ele faleceu. Milhões de pessoas foram às ruas acompanhar o cortejo do corpo de Tancredo Neves. Vivi um dos momentos mais marcantes de minha vida. O caixão de Tancredo, depois de percorrer São Paulo e Brasília, seguiu para São João del Rey, onde o presidente eleito e não empossado seria enterrado no cemitério da cidade. O Brasil parou para acompanhar aquele momento tão triste. O caixão, em cima de um tanque do exército, percorreu as ruas de São João del Rey e fez uma parada em frente ao Solar dos Neves, para o último momento da família com Tancredo. Quando o caixão foi retirado do tanque, um lance emocionante: o soldado do exército chorou ao mover o caixão. Em seguida, um momento íntimo que carrego na minha mente e no meu coração: dentro do Solar, a fala de Dona Risoleta ao se despedir de seu companheiro de tantas décadas. De lá, seguimos para o enterro no cemitério da cidade.

Daquele período até hoje, conseguimos superar todas as crises e tentativas de golpes. Como definiu Winston Churchill, "a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais".

Sigamos democráticos e focados em transformar nosso país em uma nação menos concentradora de riquezas e oportunidades nas mãos de uma minoria.

*Jornalista. Instagram:

@sergiocabral_filho