Por Leandra Lima
Cotidiano significa aquilo que é diário, ou algo habitual do ser humano, coisas que estão presentes na vivência de cada ser durante os dias corriqueiros. Para uns essas marcas do dia a dia passam despercebidos, porém, para certas pessoas, essas constâncias se tornam inspiração, como fez Maria Carolina de Jesus, uma escritora dos anos 90, que retratava na linguagem de seus textos traços fieis à oralidade do cotidiano que estava inserida. Carolina era uma mulher negra, que viveu parte de sua vida na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê. Para ela a escrita era uma forma de expressar aquilo que gostaria de falar para um confidente, narrava os dias com detalhes, destacava como era viver em uma comunidade, falava de política, fome e outros assuntos que permeiam a sociedade atual. Seu recorte é o retrato de um Brasil desigual.
Um dos livros mais famosos da autora é o "Quarto de Despejo: o Diário de Uma Favelada", nele ela relata sua própria vivência, utilizando termos e palavras que faziam parte da realidade onde estava inserida, respeitando a forma que se fala. "Elas vai na feira, cata cabeça de peixe, tudo que pode aproveitar. Come qualquer coisa. Tem estomago de cimento armado (...) As vezes eu ligo o radio e danço com as crianças, simulamos uma luta de boxe. Hoje comprei marmelada para eles. Assim que dei um pedaço a cada um percebi que eles me dirigiam um olhar terno", trecho da obra, Quarto de despejo: o Diário de Uma Favelada.
As obras de Carolina tiveram uma resistência para serem aceitas e reconhecidas por academias literárias durante um tempo, mesmo sendo reconhecida internacionalmente. Hoje seu trabalho é um objeto de estudo em Universidades e fóruns que debatem as formas linguísticas dispostas na escrita. Essa resistência em aderir a linguagem de Maria Carolina, levanta um debate sobre escrita e oralidade, para a escritora, Conceição Evaristo, Carolina teve dificuldade em ter a obra aceita por causa da linguagem usada. Nesse contexto a literária ressalta: "precisamos parar de entender o diferente como erro. A diferença sempre foi a marca do erro, mas na linguagem, não pode ter isso, as pessoas são múltiplas. Carolina tem uma outra dicção, um povo tem outra, a maneira como um médico fala não é a mesma que um lavador de carro, a forma que um engenheiro escreve, não é a mesma que um sambista. Isso é a riqueza da linguagem, que é marcada pela diversidade".
Conceição fala que é preciso ter respeito à palavra dita, pois é uma forma de resistência e de manutenção da singularidade dos indivíduos. "A norma culta não é a única, existem diferenciações, as pessoas são múltiplas e possuem vivências diferentes. A palavra dita é o corpo presente, o jeito que se fala carrega memórias e histórias, e isso é o cotidiano. A riqueza da linguagem é marcada pela oralidade".
Com essa expressão de fala vem o termo criado por Conceição Evaristo, conhecido como escrevivência, uma conexão das palavras escrever e vivência. Que se encaixa de forma indireta com a forma de escrita de Carolina. "Eu penso a escrevivência num sentido coletivo, quando trouxe esse termo, já apresentei como 'A Nossa escrevivência' pensando justamente na escrevivência de outras mulheres negras, que hoje escrevem suas próprias histórias. A escrevivencia carrega essa potencialidade de ser uma narrativa que explicita não só a voz do sujeito narrador, mas sim as vozes de todas nós", disse, Conceição.