Para quem não conhece Petrópolis ou pouco experimentou o cotidiano da cidade, pode facilmente ser levado a crer na ideia, deveras equivocada, de uma "Cidade Imperial" colonizada por germânicos e construída pela mão de obra livre e assalariada (o que não foi). O fato é que, do ponto de vista da memória, ou pelo menos dá socialmente valorizada e difundida, há passados silenciados no que diz respeito à presença de africanos e descendentes de africanos na história de Petrópolis. Esse silêncio foi algo construído e pode ser percebido quando olhamos para a memória em torno da ideia de Cidade Imperial.
Petrópolis recebeu o título de Cidade Imperial, de fato, com o Decreto n° 85.849, de 27 de março de 1981, assinado pelo então presidente da República João Baptista de Oliveira Figueiredo, no contexto de incentivo ao turismo histórico, apresentando-se como ponto fundamental para consolidação da idealização de Cidade Imperial. No entanto, essa ideia foi articulada muitas décadas antes. Podemos dizer que Getúlio Vargas, e sua tentativa de aproximação à imagem do imperador D. Pedro II, foi um agente ímpar nessa construção de memória.
Percebemos que com a extinção da Lei do Banimento, pelo Decreto nº 4.120, de 3 de setembro de 1920, houve um incremento no processo de reabilitação da memória do Império, principalmente, a partir da tomada do poder, em 1930. A "Revolução" pretendia romper com a Primeira República, criando outra narrativa, essa por sua vez, ia ao encontro da afirmação da nacionalidade brasileira, na criação de uma identidade nacional. A partir disso, iniciou-se um projeto cultural, com intuito da construção de um nacionalismo sustentado na noção de coesão social, sobretudo, com o Estado Novo. Nesse momento, surgiu uma instituição significativa para a construção de memória em Petrópolis, o Museu Imperial.
Neste contexto, há uma confluência de interesses políticos e historiográficos. Por um lado, ainda que desde os primeiros momentos da República houvesse vozes defendendo as políticas de preservação da memória do período imperial, como as que lutaram pela revogação da Lei do Banimento, percebemos que a política cultural implementada durante o primeiro governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1945) favoreceu e coadunou-se com a revitalização da memória do Império, personificado na figura de d. Pedro II. (FRAGUAS, 2019, p. 45-46)
Getúlio Vargas estava tão envolvido com a criação do Museu Imperial que acompanhou todas as etapas de construção, desde a aquisição do palácio, até a formação do acervo. As fotografias e os processos administrativos que compõem o acervo institucional, por exemplo, indicam que Vargas atuou diretamente no processo de concepção, criação e constituição do museu.
Nessa perspectiva, a criação da instituição foi um fator de relevância na formação da memória de uma Cidade Imperial, uma vez que Vargas o criava para narrar a história do Império brasileiro, no entanto, não para formar uma narrativa do Império em si, mas, sim, conforme idealizado pela República e, em especial, pelo seu projeto de poder. Nesse ponto de vista, deparamo-nos com uma contradição: uma cidade que insistia em ser Corte com a presença da República, com um presidente que tentava se aproximar da figura de liderança de D. Pedro II. A partir disso, a ideia da Cidade Imperial foi se consolidando ao lado do próprio museu, pensado para uma narrativa própria, tal qual Vargas pretendia.
Dessa maneira, a fabricação do imaginário da Cidade Imperial, sem problemas e conflitos, fez com que a experiência de africanos livres e escravizados em Petrópolis não fosse efetivamente explorada e pesquisada por muito tempo, gerando o apagamento da memória negra sustentado na noção de cidade forjada pelas elites e por imigrantes europeus, portanto, livre de qualquer marca africana.
No entanto, essa ideia de Cidade Imperial traz uma série de problemas, não só para os petropolitanos, mas, também, aos turistas que visitam Petrópolis. Há toda uma vontade, uma demanda, que é coletiva, para a discussão sobre a cultura africana e afro-brasileira na cidade. Vale aqui citar a experiência do Museu da Memória Negra de Petrópolis - uma importante iniciativa coletiva que tem por intuito formar um acervo público para negras e negros, mas, sobretudo, reivindicar narrativas e promover ações identitárias e representativas para a população afro-petropolitana, um espaço que nasce como um museu virtual, mas que caminha para a sua realização física. As redes sociais do Museu da Memória Negra recebem um número significativo de mensagens semanais de turistas perguntando o endereço do museu. Certamente, esse movimento nos mostra toda uma demanda existente para a discussão sobre essas memórias. Portanto, defendemos que é preciso uma virada de chave. É preciso anunciar que por aqui passaram muitas gentes, africanos e descendentes de africanos que tinham histórias e que por aqui fizeram história.
*Historiador, Associado Titular do Instituto Histórico de Petrópolis (IHP) e integrante do Museu da Memória Negra de Petrópolis