Por: Affonso Nunes

Reverência em tom maior

Cristina Guimarãe sobre o álbum: 'Este é realmente um sonho realizado. Queria um disco que transitasse pelas ondas e nuances da música e da poesia de Luiz Melodia, algo delicado e intenso ao mesmo tempo' | Foto: Vinícius Campos/Divulgação

A cantora paulistana Cristina Guimarães revisita a obra de Luiz Melodia no recém-lançado álbum "Presente & Cotidiano", disponível nas plataformas digitais. O projeto vai além da homenagem. Ao interpretar um repertório que combina clássicos e canções menos conhecidas, Cristina reafirma a vitalidade da obra do compositor carioca e imprime sua marca pessoal nas releituras.

Com arranjos assinados por André Bedurê, também responsável pela produção musical, o disco reúne faixas como "Magrelinha", "Estácio, Eu e Você" e "Retrato do Artista Quando Coisa", esta última abrindo o álbum em interpretação à capela. O repertório valoriza canções menos óbvias da trajetória de Melodia, como "Começar pelo Recomeço", "Giros de Sonho", "Dias de Esperança" e "Feras que Virão", além de joias pouco difundidas como "Um Toque", "O Sangue Não Nega" e a que dá nome ao disco, "Presente Cotidiano".

As participações especiais de Cida Moreira e Zeca Baleiro enriquecem este sensível e emocionado trabalho. Baleiro divide com Cristina os vocais em "Giros de Sonho", enquanto Cida aparece em "Feras que Virão", faixa que ecoa estéticas de Walter Franco (1945-2019) e Itamar Assumpção (1949-2003), mentes musicais tão geniais quanto a do carioca morto em 2017.

A produção destaca a fusão entre lirismo e ousadia rítmica, com soluções criativas como o arranjo em clima flamenco para "Dias de Esperança", originalmente com estrutura de valsa.

Além de Bedurê, que também toca baixo, violão de nylon e faz vocais, o disco conta com Rovilson Pascoal (guitarra, cavaquinho e violões) e Gustavo Souza (bateria e percussão). O violoncelista Jonas Moncaio participa como convidado. Bedurê valoriza a contribuição individual dos músicos na construção do álbum. "Os arranjos foram concebidos por mim, mas o resultado final carrega a assinatura de cada integrante", afirma.

Cristina, que já lançou um EP e quatro singles, revela que o desejo de gravar um álbum dedicado a Luiz Melodia vinha sendo amadurecido há muito tempo. "Este é realmente um sonho realizado. Queria um disco que transitasse pelas ondas e nuances da música e da poesia de Melodia. O resultado me agrada profundamente. É delicado e intenso ao mesmo tempo", diz.

A cantora destaca a força poética da obra de Melodia, especialmente em versos como os de "Magrelinha", que menciona em sua fala com emoção. Segundo ela, cantar essas músicas é uma forma de reviver o impacto que a obra do compositor sempre exerceu sobre sua trajetória artística.

"Presente & Cotidiano" encerra com a faixa-título, numa interpretação que sintetiza o espírito do álbum. Com harmonia envolvente e ritmo solto, Cristina entrega uma leitura que reflete a beleza, a complexidade e o lirismo do cotidiano, temas tão presentes na obra de Luiz Melodia. Ao dar voz ao eterno compositor do Estácio, a intérprete confirma sua vocação de transitar com elegância entre afeto, ousadia e reverência.

 

Uma voz periférica e universal

'Luiz Melodia levou questões da vida nas periferias para sua obra musical | Foto: Divulgação

Luiz Melodia (1951-2017) é considerado um dos mais importantes nomes da música popular brasileira, cuja obra transcendeu as fronteiras de um gênero para se tornar um legado artístico repleto de originalidade e emoção. Cria do Morro do Estácio, foi estrela ascendente da MPB das décadas de 1970 e 1980 com uma obra singular marcada por uma fusão (então) inovadora de samba, bossa nova, jazz e música afro-brasileira. Álbuns como "Pérola Negra" (1973), "Maria Madalena" (1975) e "Luz das Estrelas" (1990) são marcos na história da MPB.

Além do genial compositor, Melodia era dono de voz inconfundível e um estilo particular. Da complexidade das emoções humanas verteu canções memoráveis. Muitas vez crua e visceral, suas letras tratavam de amor, luta, resistência e marginalidade. Criações como "Pérola Negra", "Estácio, Eu e Você" e "Magrelinha" ainda hoje são fortes referências na canção popular produzida no Brasil.

Sua relevância no contexto da MPB não está apenas na forma de cantar, mas na forma como abordou questões sociais e culturais com profundidade, ao mesmo tempo em que desafiava as convenções da música popular com arranjos e ritmos pouco ortodoxos. Ainda levou estigmas da vida nas periferias para os grandes palcos e fez de sua arte ferramenta de resistência e expressão da identidade brasileira. (A.N.)