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'Nós, mulheres negras, temos uma maneira de ficcionalizar que é diferente'

Na entrevista a seguir, dada por telefone ao Correio da Manhã, Conceição comenta polêmicas - como as marcas racistas no escritor Monteiro Lobato -, fala do que espera do ensino público na (nova) Era Lula e celebra a sabedoria feminina.

Que dimensão política existe conscientemente em sua literatura?

Conceição Evaristo: A autoria negra, de mulher, num país onde a literatura sempre veio de homens brancos, já carrega um sentido político em si. Nós, mulheres negras, temos uma maneia de ficcionalizar que é diferente, com um discurso mais forte na criação de identidades a partir daquilo que somos.

De que maneira o conceito de "denúncia" se aplica à sua escrita?

As mulheres negras, apesar do machismo que nos cerca, conseguem criar redes de denúncia e de cumplicidade que os homens não são capazes de fazer. Em meus livros, a denúncia se dá pelo enredo, retratando as zonas de risco que nos cercam no dia a dia. Cada vez que um personagem meu morre, a gente tem um grito de vida. Ouve-se um grito que aponta as impossibilidades que nos cercam.

Qual é o lugar simbólico, poético e político do silêncio na literatura que a senhora pratica?

Não existe silêncio eterno. Silêncio pode ser uma escolha, uma tática pra se gritar depois. Silenciamento, não. Esse é opressão. E é contra ela que a literatura se impõe como uma força. Palavra é vingança. Palavras falam pelos orifícios das máscaras que usamos.

Há palavras de tônus racista, ofensivas, hoje que estão sendo apagadas do uso corrente, como "crioulo".Também foi banido o uso de "mulata" e "mulato". Mas ainda existe um eco de dor em torno desses termos?

Palavras como "crioulo" e "mulata" representarão perigo enquanto elas fortalecerem um imaginário nomeador de coisas e ideias responsável pela subalternização do povo negro. Elas precisam, sim, ser esquecidas, assim como certos ditos populares que foram naturalizados, mas construíram um imaginário racista em sua repetição.

Como a senhora avalia a discussão acerca do revisionismo histórico ou do "cancelamento" de obras literárias carregadas de termos ou ideias que podem alimentar racismo, sexismo, homofobia e outras práticas de exclusão, como é o caso da obra de Monteiro Lobato?

O imaginário canônico da literatura brasileira é racista contra populações negras e indígenas. Existe todo um estereótipo histórico do "índio preguiçoso". E existem muitos autores machistas. O erro perdura. Tanto é que envolve um autor apontado como um dos nossos maiores literatos. Porém, com essa prática de trocar termos que não são mais aceitos, corremos o risco de que as partes racistas desses livros passem por uma limpeza, fazendo com que a gente perca a dimensão do preconceito de textos escritos há tempos. Não há que se por fogo nessas obras, há, sim, que ler o que foi escrito na companhia de professoras e professores capazes de apontar o que está ali e abrir um debate.

Diante desse papel que professoras e professores podem ter, como a senhor avalia o ensino público que o Brasil pode ter agora no atual governo?

O ensino público é revolucionário quando tem uma política de educação atenta a quem mais precisa dele: as classes populares. Eu lecionei durante anos pro primeiro segmento e o momento mais forte da minha presença em sala de aula foi o período dos Cieps, no governo Brizola, com o Darcy Ribeiro pensando a Educação. Ali, além do que professoras como eu fazíamos, tínhamos educadores das próprias comunidades aportando cultura popular para estudantes. Acho que estamos num momento fértil agora, mas é preciso que o atual governo pense na verba destinada à Educação, lembrando que ela vai do maternal ao terceiro grau. É necessário que a filosofia do ensino seja a mais ampla e democrática possível.

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