Por: Affonso Nunes

Amizade falou mais alto e o Boca Livre voltou!

Lançada originalmente pela banda Los Hermanos, em 2005, a música "O Vento" (Rodrigo Amarante) ganha nova versão com o Boca Livre e está no novo álbum do grupo, "Rasgamundo". | Foto: Alexander Landau/Divulgação

Esse texto precisa ser aberto com versos que não são meus, mas de Caetano Veloso e lindamente cantados pelo Boca Livre no início dos anos 1980: "Alguém cantando longe daqui / Alguém cantando longe, longe / Alguém cantando muito / Alguém cantando bem / Alguém cantando é bom de se ouvir / Alguém cantando alguma canção / A voz de alguém nessa imensidão / A voz de alguém que canta / A voz de um certo alguém / Que canta como que pra ninguém / A voz de alguém quando vem do coração / De quem mantém toda a pureza / Da natureza / Onde não há pecado nem perdão".

O mês de janeiro de 2021 foi seguramente um dos meses mais tristes da história da MPB com o anúncio do fim do Boca Livre, um de nossos mais invetivos quartetos vocais. Divergências políticas num período conturbado da vida brasileira foram decisivos para que Zé Renato, Lourenço Baêta e, depois, David Tygel decidiram deixar o grupo. A legião de fãs ficou atônita enquanto os três integrantes e mais Maurício Maestro tocavam suas carreiras solo.

Quis o destino que "Pasieros", um álbum gravado com o panamenho Rubén Blades em 2011, lançado em 2022 e premiado com o Grammy Awards na categoria Melhor Álbum de Pop Latino fosse o sinal verde para uma lenta reaproximação dos quatro músicos. Pois agora chegou no vento a boa nova: o Boca Livre está de volta!

A separação, felizmente, mostrou-se apenas uma pequena interrupção na trajetória de 45 anos do grupo. A velha amizade e principalmente a harmonia - musical em geral e vocal em particular - prevaleceram. A reunião foi selada com a gravação de um single, a ser lançado em 27 de outubro, e o primeiro show está marcado para 5 de novembro em Montevideo.

"O retorno do Boca Livre, além de ser um desejo de retomar um trabalho de fundamental importância para as nossas vidas, é também a oportunidade de ampliar um público que, acreditamos, ter potencial para se somar aos que vêm nos acompanhando ao longo desses 45 anos", destaca Zé Renato.

David Tygel, Zé Renato e Lourenço Baêta estavam em Los Angeles para a cerimônia do Grammy. A simples indicação ao prêmio já era motivo de celebração mas, com a estatueta em mãos, os três ligaram para Maurício Maestro para dar a surpreendente notícia.

 

Um sucessão de sinais selou o reencontro

| Foto: Divulgação

A vida é feita de sinais e o reencontro do Boca Livre ainda seria marcado por outros indícios. Um deles foi a intenção do produtor original dos LPs, João Mário Linhares, de relançar nas plataformas digitais os dois primeiros (e míticos) discos do grupo.

"O destino estava a dizer que o Boca Livre tinha um presente a viver: festejar, badalar, e até quem sabe levar para o palco um disco novo que ganhou o prêmio internacional mais importante da indústria musical", comenta o jornalista e crítico musical Hugo Sukman, um velho amigo do quarteto.

Mas também havia uma missão relacionada ao passado do grupo que era trazer para o mundo digital o inaugural "Boca Livre" (1979), famoso como fenômeno do disco independente que lançou o grupo e consagrou clássicos da música brasileira como "Quem Tem a Viola", "Toada", "Mistérios", "Diana", entre muitos outros; e o não menos importante "Bicicleta" (1980), com outros clássicos, e a participação de ninguém menos do que Tom Jobim em duas faixas ("Correnteza" e "Saci") e do percussionista Naná Vasconcelos.

Passado para cuidar, presente para viver. E o futuro? Esse foi revelado por uma nova canção de Zé Renato, "Rio Grande", em parceria com Nando Reis. Trata-se de uma obra nova e original com harmonia calcada no violão e espaço para viola, solos vocais e aberturas de vozes tão ao gosto do Boca Livre. E como se não bastasse com uma letra com alusões à natureza, algo tão familiar á discografia do grupo.

Nascida meio por acaso, a canção tem a seguinte história: Zé Renato estava trabalhando a música e, assim que escutou, o produtor paulista Marcus Preto sugeriu que a melodia fosse mandada para Nando que, fã do Boca, escreveu a letra na medida. Zé mostrou ao resto do grupo logo no primeiro encontro, um ensaio como sempre na casa de David em Ipanema e a decisão foi unânime: "Rio Grande" marca o renascimento do Boca Livre e foi gravada no estúdio Visom, com arranjo de Maurício Maestro, que também toca o baixo elétrico, Zé Renato nos violões, David na viola, Lourenço na flauta, além de bateria e percussão de Marcelo Costa (presente desde o primeiro disco), o piano de João Carlos Coutinho, o violoncelo de Aleska Chediak e o saxofone do produtor da sessão, Zé Nogueira. Como sempre foi.

A volta aos shows já em novembro e até um documentário sobre a trajetória do grupo, a ser feito pela premiada diretora Susanna Lira (de "Clara Estrela", sobre Clara Nunes), completam as muitas ações que parecem querer compensar com sobras os anos de ausência do grupo.

O reencontro chegará, é claro, aos palcos do Brasil, no tempo certo. Antes, contudo, e já como efeito do Grammy em língua espanhola, o Boca Livre retorna aos palcos no Uruguai, em 5 de novembro, no tradicional Festival Música de la Tierra, em Montevideo.