Por: Affonso Nunes

Hemínio Bello de Carvalho, o passageiro dos relâmpagos que carrega um catavento

Hermínio: 'Durmo pouco, leio muito e produzo muito também' | Foto: Fabricia Santos/Divulgação

Testemunha ocular e também protagonista de grandiosos momentos da música brasileira, Hermínio Bello de Carvalho está completando 70 anos de ininterrupta atuação. Nada mais justo para celebrar a efeméride do que o projeto comemorativo concebido pelo Sesc São Paulo. Coordenado pelo produtor paulista Helton Altman, o tributo ao poeta, compositor e agitador cultural, reúne o livro "Passageiro de Relâmpago" e o CD "Cataventos".

A organização do livro foi entregue à cantora e compositora Joyce Moreno, parceira do poeta há longos anos. "Recebi do amigo Hermínio a honrosa incumbência de organizar os textos com que ele marca inacreditáveis 70 anos de atividade. São textos inéditos, guardados por ele, de máxima importância para trazer um novo olhar sobre a história cultural do Brasil. Um olhar de quem viu e viveu tudo", resume ela.

HBC, como é carinhosamente chamado, foi parceiro de Cartola, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, Pixinguinha. Fez letras para choros de Jacob do Bandolim e foi cantado por Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Gal Costa, Ney Matogrosso. Com direção de Helton Altman e produção musical e arranjos de Lucas Porto, "Cataventos" conta com sambas, sambas-canção e uma valsa em 15 faixas.

Um elenco de intérpretes aborda o repertório autoral do homenageado: Maria Bethânia, Alaíde Costa, Vital Lima, Paulinho da Viola, Áurea Martins, Joyce Moreno, Zé Renato, Vidal Assis - com destaque para alguns parceiros da vida artística de Hermínio: Alfredo Del Penho, Ayrton Montarroyos, Gabi Buarque, Giulia Drummond, Marcos Sacramento, Pedrinho Miranda e Pedro Paulo Malta. O CD tem a participação especial da atriz Fernanda Montenegro, que abre o fecha o disco declamando os poemas "Labirinto" e "Enunciação".


 

'Estou permanentemente cataventando'

A obra de Hermínio é prato cheio para qualquer arranjador | Foto: Acervo Pessoal

"O álbum é um espanto. Faz a gente se perguntar: como um homem de 88 anos, com a história e as realizações de Hermínio, consegue ainda ter fôlego para lançar uma obra inédita desse porte? Quando tantos bem mais novos que ele já se aposentaram, penduraram as chuteiras ou se mantiveram num círculo de eternas repetições, vivendo de antigas glórias, eis que esse guerreiro cultural rompe a cortina do passado e nos apresenta esta série de canções inéditas, de fio a pavio, com parceiros não tão recentes e outros que recém-foram alunos e alunas seus", elogia Joyce.

Segundo Lucas Porto, parceiro e amigo desde 2007 quando se conheceram na Escola Portátil de Música no Rio de Janeiro, a lista de composições de Hermínio é "um prato cheio para qualquer arranjador, pelo contraste natural entre músicas inéditas recentes e outras com mais de 30 anos que foram redescobertas, como 'Labaredas', cantada pelo Ayrton Montarroyos, uma parceria de Hermínio com Cartola que foi gravada apenas uma vez na década de 1980"."Sou curioso, de ouvido bom, comentarista de música desde os 16 anos. Gosto de trabalhar com estranhezas. Durmo pouco, leio muito e produzo muito também. Tenho mais uns cinco livros por editar e mais uns dois discos prontos. E sim, cultivo cataventos. Estou permanentemente cataventando, exposto aos raios e às ventanias, abençoado por meus anjos da guarda desde menino: Pixinguinha e Cartola, parceiros fúlgidos, luzentes; e Clementina de Jesus, baobá iluminado pelo olhar incandescente de Mário de Andrade, meu farol. Sigo meu destino pisando um chão coruscado de esmeraldas e estrelas - sina dos poetas", comenta HBC.

"Fica evidente que este é um disco de música e poesia, com a primeira e a últimas faixas dando-nos o privilégio da voz de Fernanda Montenegro. Nunca, nunca mesmo, poderia imaginar que ela um dia estaria recitando um poema meu", espanta-se.

Dentre as canções presentes no disco, vale fazer alguns destaques. "Valsa da Solidão" foi a primeira música feita com Paulinho da Viola, mas só agora foi gravada pelo artista. Já "Cobras e Lagartos", a mais exitosa parceria com a compositora Sueli Costa, ganhou uma homenagem de Maria Bethânia, que a gravou com arranjo e violões de João Camarero. Entre as inéditas, destacam-se "Louva-a-Deus", parceria com Vidal Assis e Luis Barcelos na voz de Joyce Moreno e Alfredo Del-Penho, e "Só se for agora", interpretada pela cantora Alaíde Costa.

Como se não bastasse sua grandeza como compositor, o poeta considera inevitável em sua biografia a abordagem de programas culturais, como a criação dos Projetos Pixinguinha e o Lucio Rangel de Monografias na Funarte - bem como a revelação de Clementina de Jesus, antes uma então desconhecida empregada doméstica com 62 anos de idade, posteriormente um mito consagrado internacionalmente. Clementina foi estrela do musical "Rosa de Ouro" na década de 60 onde igualmente atuava Paulinho da Viola, primeiro parceiro musical de Hermínio.

Aos 88 anos, HBC tem em seu currículo mais de 20 livros publicados e uma extensa produção discográfica - mais de 150 músicas gravadas - além dos muitos prêmios que recebeu ao longo de sua carreira artística - com destaque para a Ordem do Mérito Cultural e o titulo de Doctor Honoris Causa concedido pela Unirio, Universidade do Rio de Janeiro. Hermínio Bello de Carvalho é Presidente do Conselho Deliberativo da Casa do Choro/Escola Portátil de Música. É dele o autor do do seguinte texto.

"Não é muito difícil falar sobre o meu trabalho. Graças ao apoio do Sesc São Paulo, oferecido através do Danilo Miranda (morto semana passada), foi possível editar o livro e produzir o CD. Convoquei, com anuência do Danilo, o produtor Helton Altman para administrar esse programa. E o critério para a produção do disco, por exemplo, obedeceu a um conceito bem claro: também abrir espaço para jovens parceiros meus ao lado de nomes já consagrados - e abordar um repertório majorativamente inédito. E isso sem falar do time de excelentes músicos, a maioria deles recrutados pelo arranjador e maestro Lucas Porto. Convocamos o artista plástico Mello Menezes para ilustrar o trabalho da capa do disco e a minha parceira Joyce Moreno foi chamada pelo Helton para a organizar o livro de crônicas. Tudo isso, lembremos, graças ao apoio do Sesc através do Danilo, que infelizmente nos deixou no último dia 31. A ele dedicamos este projeto.

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