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Dilemas em tempos de IA

Gabriel Aragão concilia a vida como músico profissional e os desafios de refletir sobre direitos autorais nesses tempos de inteligência artificial | Foto: Felipe Kautz/Divulgação

O tópico da inteligência artificial tem pautado diversos debates nos mais variados segmentos - e não é para pouco. Com o maior acesso a ferramentas que geram conteúdos de forma gratuita e com grande precisão, surgem questões éticas, legais e econômicas. A IA está sendo apontada como uma grande responsável pelo desaparecimento de funções há muito estabelecidas. No mercado criativo, uma das perguntas - ainda sem resposta - é a questão do direito autoral. Afinal, como ele fica no contexto de obras criadas em "parceria" com ferramentas de texto, design e vídeo?

Especificamente na criação musical, o uso da IA levanta desafios legais relacionados à autoria, uma vez que a legislação brasileira atualmente protege apenas obras criadas por seres humanos. A falta de atualização das leis de direitos autorais, que datam de 1998, deixa lacunas diante da evolução tecnológica e das questões éticas que surgem 25 anos depois.

A colaboração entre humanos e IA já está moldando o presente da música, e cláusulas contratuais desempenham um papel fundamental na definição dos direitos autorais.

O cantor e compositor Gabriel Aragão é um nome que transcende as barreiras entre a música e o mundo jurídico. Com sua formação em Direito e uma carreira musical renomada - tanto solo quanto à frente da banda Selvagens à Procura de Lei -, ele conhece em primeiro mão os dilemas legais enfrentados no mundo da música, em especial no contexto do streaming.

Para Aragão, a atualização das leis de direitos autorais é essencial. "Todo profissional precisa e merece saber o porque se ganha o que se ganha. Com os músicos e compositores, ainda mais, pois é uma área repleta de incertezas, fruto do desconhecimento. Há um desconhecimento por parte do próprio judiciário de como julgar casos no contexto do streaming, dada a falta de transparência. Resumindo: vivemos a ''uberização' do trabalho de músico/compositor, sem proteção dos próprios direitos", ele ressalta.

 

Uma revolução em curso num momento histórico

A IA foi fundamental na recuperação da voz de John Lennon para o lançamento a faixa 'Now and Then' | Foto: Reprodução YouTube

Atrajetória de Gabriel Aragão é marcada pela fusão entre seus interesses musicais e acadêmicos. Ele se formou em Direito, mas sua paixão pela música o levou a se juntar aos Selvagens há uma década. Embora tenha se afastado da faculdade, Aragão retornou para concluir o curso, concentrando-se no estudo dos direitos autorais, principalmente no contexto do streaming.

Sua tese, "Direitos Autorais e a Hipossuficiência do Criador Musical: Uma Análise da Transparência e da Remuneração no Contexto do Streaming de Música no Brasil", se tornou referência na área.

A revolução da IA acontece em um momento histórico, também, para o negócio da música. A indústria passa por uma busca de maior autonomia dos artistas em relação aos seus catálogos. O cenário da autoria musical se tornou mais complexo, com a rápida evolução da tecnologia e novas possibilidades de produção.

Em âmbito global, a discussão sobre a IA e direitos autorais está avançando em países como China e Estados Unidos. Recentemente, um tribunal dos EUA decidiu que obras de arte criadas exclusivamente por inteligência artificial não estão sujeitas à proteção de direitos autorais, a menos que haja uma contribuição significativa de criatividade humana. Isso destaca a necessidade de revisão das leis para acomodar as criações da IA e abre o debate sobre o significado do papel humano na criação artística. À medida que a tecnologia avança, a adaptação legal e contratual se torna essencial para equilibrar a proteção dos criativos com o uso responsável da inteligência artificial.

A utilização dessas ferramentas na indústria do entretenimento também gera atrito para além da música, especialmente evidenciado pelas greves de atores e roteiristas de Hollywood. Esses profissionais vêem suas oportunidades e condições de trabalho diminuindo à medida que suas criações são usadas para alimentar máquinas, levantando a questão de uma possível crise na indústria criativa global.

Mas nem tudo envolvendo a inteligência artificial é negativo. A ideia de que a IA está chegando para roubar empregos é um fenômeno recente que desconsidera um fato importante: essas tecnologias fazem parte, há algum tempo, do cotidiano de muitos. Afinal, ela está influenciando assistentes virtuais, recomendações personalizadas, mídias sociais, comércio eletrônico, assistência médica, carros autônomos e muitas outras áreas, tornando as interações mais personalizadas e eficientes em diversas esferas da sociedade.

Um exemplo positivo foi o lançamento póstumo da faixa "Now and Then" pelos Beatles. A partir de uma fita cassete demo gravada por John Lennon (1940-1980), a faixa seria completada em 1995 por Paul McCartney e George Harrison (1943-2001). Como os registros da voz de John e seu piano estavam insatisfatórios até agora.

A equipe do cineasta Peter Jackson desenvolveu a tecnologia necessária para separar os trechos de áudio e dividir os componentes musicais. A ferramenta permitiu isolar e limpar a voz de Lennon dos ruídos da gravação para ser utilizada na canção com o acréscimo de outros instrumentos.

A IA não gerou conteúdo novo ou artificial com a voz do cantor, apenas recuperou o antigo material, o que reduz possíveis implicações éticas sobre uso de IA e deepfakes para gerar conteúdo novos de artistas falecidos. Na prática, a tecnologia apenas refinou o conteúdo pré-existente.

Gabriel Aragão reconhece que a IA está presente na vida da maioria dos músicos no contexto profissional. "A IA já é utilizada em todos os programas de gravação. Acontece apenas que o salto evolutivo da IA está chegando próximo à uma revolução de como nos organizamos enquanto sociedade em todos os sentidos. Não vejo como ameaça, acho que a expressão da alma do ser humano pela arte sempre será mantida e apreciada por outros seres humanos. A IA será uma ferramenta enquanto tratarmos ela como ferramenta", ele aponta.

Como toda ferramenta, o que importa no final é como ela é utilizada - seja para construir ou para destruir. O impacto real da inteligência artificial generativa só poderá ser sentida com o passar do tempo.

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