Por: Affonso Nunes

'De tempos em tempos se exalta a truculência', diz cineasta Mauro Lima que recria fase do Esquadrão da Morte e do surgimento das milícias

Mauro Lima (de boné) orienta Renato Góes no set de filmagens | Foto: Divulgação

De que maneira você aborda a figura de Mariel Mariscot e seus feitos?

Mauro Lima: Eu resolvi tirar do contexto biográfico e criar uma abordagem diferente e menos "wikipédica" (com o perdão do neologismo), com uma perspectiva que passasse por um certo entendimento de algumas pessoas do entorno dele. Parti de relatos desses personagens e de como foram formando uma compreensão sobre aquela figura tão absolutamente paradoxal e rodeada de mistérios. Eu falo de gente como Darlene Glória, com quem ele teve um filho. Falo da travesti Rogéria, com quem ele namorou. Falo de uma sobrinha adolescente da Bahia, um colega do Esquadrão do tempo de guarda-vidas (e do clube do Bangu), de um jornalista famoso em quem bateu...

Como o filme recria a fase do Esquadrão da Morte?

O filme vai do tempo em que ele era salva-vidas em Copacabana até a segunda prisão, quando fugia na Bahia. Portanto, a narrativa passa pela fase inicial dele na Polícia, fala da criação dos "Homens de Ouro" da PM e do esquadrão. Na realidade, o Esquadrão da Morte, nasce como o rebento da cruza de uma iniciativa oficiosa da Secretaria de Segurança (os Homens de Ouro) com a proverbial Escuderie Lecoq. São três sujeitos distintos, mas comumente confundidos. O status de Homem de Ouro da polícia deu a Mariel o que ele achava ser o pretexto e a condição para cruzar a linha e, não obstante, alardear e capitalizar com isso. Criou uma marca, um nome, um personagem (Rosa Vermelha) e fez uma simbiose licenciosa com a crônica policial e a chamada "bandidagem".

Que período histórico você aborda no filme?

São três fases. O filme vai do Golpe de 1964 se avizinhando, na época da caçada humana ao bandido Cara de Cavalo (eternizado na obra do Hélio Oiticica), até 1972/73, que eu chamaria de Anos de Chumbo. Pega o governo Negrão de Lima, do Estado da Guanabara, tendo o general França como secretário de segurança. Vai até o advento do AI-5 e do proverbial "Auto de Resistência" e, na sequência, chega ao governo Chagas Freitas, que desfaz os Homens de Ouro e cassa os policiais do esquadrão.

Qual é o Rio retratado no filme?

Ele passa pela Copacabana do comecinho dos anos 1960, ou seja, de um glamour resistente, vivendo ali uma espécie de crepúsculo da fase áurea do bairro. Traz uma memória ainda um pouco viva do que teria sido a época dos extintos cassinos nos anos 1940, ou das boates incríveis dos 1950. Tudo é narrado pelo olhar de dois garotos atletas, vindos de Bangu (Mariel e Tigrão), que conquistam o posto de guarda-vidas naquela área e, portanto, algum status de "xerifes" do calçadão. Numa segunda fase, já entramos em um momento de maior decadência do bairro, com o surgimento de uma miríade de inferninhos, onde reinariam o lenocínio, o tráfico e outras atividades de interesse de turistas e boêmios. Do outro lado, há pânico geral da moralidade da classe média. Nessa fase, o roubo da féria de taxistas (os crimes da Bandeira 2) e os roubos de bancos e de automóveis acaba por redundar em alguma pressão sobre as autoridades. Em paralelo, os bicheiros faziam acordos recorrentes com a polícia para tudo quanto é atividade de proteção de seus interesses. Nesse contexto, nasce o Esquadrão da Morte.

O quanto desse Rio ainda existe?

Eu diria que o que já havia ali, e ainda existe, é essa vocação pela formação de grupos armados e milícias, misturando de maneira indelével agentes do estado com bandidos e mafiosos. Nomeie como quiser: milícia, escuderia, grupo de extermínio, justiceiros... E não nasceu ali. Como princípio, nasce com a necessidade de um aparato de contenção social, um expediente que tornasse possível manter os interesses de uma sociedade que "pretendeu" deixar de ser escravocrata ainda o sendo. De tempos em tempos se exalta a truculência de figuras como Mariel Mariscot, detetive Le Coq ou um Capitão Nascimento da vida. No fundo é tudo sobre a defesa da propriedade de uma minoria em detrimento de uma massa que se encontra ainda pra trás da Revolução Francesa. Essa obsessão com uma certa polícia honesta de filmes e livros é quase um fetiche que quer disfarçar o tamanho da vileza que a desigualdade impõe contra uma massa de pobres, pretos, que descendem de uma abolição de araque. O princípio é vil no útero, não importa se corrompido na tecnicidade ou não. O resto é conversa fiada de "o sistema é isso e aquilo…".

O quanto deste nosso estado de milícia reflete o tempo de Mariel?

Bastante. Aliás, muito disso tudo começa com as diligências especiais do General Amaury Kruel, nos anos 1950, a Invernada de Olaria. Era a licença pra matar e torturar que alguns grupos recebiam. Alguns deles aprenderam com franceses que estiveram nas colônias da África. Isso era o governo dito democrático do JK, não a ditadura. É o que é… e sempre foi: contenção social e defesa da propriedade. É no interior desses aparatos que nascem os embriões desse processo de "milicianização".

Qual é o dilema dele no filme e o quanto esse mergulho num Rio ilícito conversa com 'Meu Nome Não É Johnny', filme de sua autoria?

Em uma das entrevistas que eu li dele, no caso, uma pro "Pasquim", ele responde a um indócil Fausto Wolf que tinha plena consciência de que como policial trabalhava pra defender a propriedade de uma minoria de ricos, mesmo sendo ele um pobre assalariado. Isso não o revoltava porque o objetivo dele era fazer parte ("chegar junto", nas palavras dele) exatamente dessa mesma minoria. Mais adiante, ele confessa que, se tudo desse certo, ele ficaria rico em pouco tempo. Claramente, se referia ao jogo do bicho. Ele dá essa entrevista ainda em regime semiaberto e morre assassinado poucas semanas depois. Isso dá uma ideia de que talvez ele não tivesse grandes dilemas, mas objetivos claros. Por aí, acho que a história dele talvez guarde algum parentesco dramatúrgico com "Meu Nome não é Johnny". Acho que o Mariel Mariscot era o que os anglófonos chamam de "serial oportunist"… Por outro lado, considero o Mariel um personagem com altíssimo grau de narcisismo e sociopatia.

Qual é o maior desafio de se narrar um filme da perspectiva da polícia... e uma polícia considerada corrupta... nos tempos de hoje? Ou a versão não é da polícia?

Não, não é a versão da polícia, e, na realidade, até mesmo as versões da própria polícia variam. Pra alguns, Mariel era herói; pra outros, um bucha. A mim, interessou mais o olhar de pessoas que viveram perto dele e das diferentes formas como foram atravessados pela convivência com esse indivíduo… e vice-versa. Afinal, memória é construção e o cinema se alimenta desses processos do inconsciente.

 

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