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Paulo-Roberto Andel: Ifood e biscoitos recheados

Foto Sérgio Lima | Foto: Divulgação

Às vezes peço comida pelo aplicativo. Em mais de mil pedidos, a rigor só tive dois problemas: um rapaz negacionista em plena pandemia que veio me entregar cinco pedidos sem máscara, e outro que abriu a minha comida para ver algo indevidamente, então cancelei o pedido. Dois por mil são 0,2%. O resto tem sido de uma tranquilidade enorme. É muita coisa positiva num país onde pessoas matam por causa de um simples esbarrão.

Sempre que posso, dou gorjeta. Eu também sou pobre, mas meus trabalhos são infinitamente mais confortáveis do que o dos entregadores. Em geral eles estão sempre com o semblante de cansaço, que é inevitável. A maioria é magrinha. Fico pensando nos trabalhadores esfomeados carregando tudo que não podem comer. Isso me rói. E se eu não pedir, eles não recebem nada. O sistema é de uma crueldade afiada.

Já reparou os perfis das pessoas que entregam pelo Ifood? Tanta gente honesta, na batalha por uma migalha feito eu. Às vezes a gente acha - com razão - que a humanidade está perdida, que todos são ruins e cruéis, mas ainda tem gente com bondade no coração. Talvez seja pouco para mudar o mundo, mas nos ajuda a ter sentimentos melhores. "Meu sonho é ajudar minha família", "Um dia eu vou ter uma casinha pra mim", "Meu filho é meu mundo". São essas e muitas outras frases com o melhor da essência humana. O amor, a fraternidade, o bem querer que não estão em cardápios sofisticados, nos carros luxuosos ou nas riquíssimas coberturas, mas em perfis anônimos de gente que dá duro para sobreviver e fazer com que os seus sobrevivam.

Todo dia tem alguém falando mal do biscoito recheado na TV. É um alimento maldito, que faz mal à saúde, que cria uma legião de obesos - o pessoal jura que se preocupa com a qualidade de vida da rapaziada, mas tem uma cara de gordofobia... -, um inferno. Ok, faz mal, é um alimento multiprocessado (como tantos outros) etc.

Bom, acontece o seguinte: o Brasil é um país onde você tem como uma das únicas diversões a TV. A maior parte da população é muito pobre, e passa os dias vendo o massacre do biscoito recheado. Essa mesma população muitas vezes trabalha longe de casa, leva horas no trânsito, ganha mal, trabalha em condições precárias e, por fim, dificilmente tem um almoço que atenda suas necessidades. O que o pessoal acaba fazendo? Lanchando no fim do expediente, entre a saída do trampo e a chegada ao ponto de ônibus ou estação de trem. Lanchando biscoito recheado.

A mesma televisão que massacra, com relativa justiça, o biscoito recheado faz a digna ode a frutas e legumes, muito mais saudáveis (não pensemos nos agrotóxicos) e convidativas. Com as frutas, todos seremos esbeltos, acabará a maldita gordura per capita do brasileiro e a felicidade será abundante.

O problema é que aquele mesmo trabalhador oprimido, que vê seu almoço ser esculachado na TV diariamente, e come biscoito recheado porque não tem alternativa, vê as lindas frutas mas constata que seu minúsculo salário não lhe permite comprá-las, porque qualquer lote ou meia dúzia de peças custa o dobro ou o triplo do biscoito recheado.

Pobre de quem não trair o biscoito recheado: será um relapso, um gordo sem força de vontade, jamais como uma vítima desse sistema que só serve para humilhar, massacrar e frustrar.