Por: Aldo Tavares

Linhas de Fuga: Em busca de Anselmo

Cena do documentário 'Em busca de Anselmo' | Foto: Divulgação/HBO Max

A cada 15 dias, dividirei a coluna Mora na Filosofia com Linhas de Fuga, onde deixarei rastros sobre filme, teatro, livro, poesia. Inicio com esta série documental da HBO Max, "Em busca de Anselmo", cujas imagens mostram o mal vertiginoso do poder-entre, forma refinada de arte, oposta à forma grosseira do poder-contra.

O poder-entre atravessou séculos sobre séculos acomodando-se na representação, por exemplo, na representação do rosto de cabo Anselmo, ou melhor, do ator Anselmo, como ele se qualifica. O senso comum sempre fixa a ditadura militar ou em tanques de guerra, ou em o coronel Carlos Brilhante Ustra ordenando torturas, ou no delEgado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, desconhecendo que tais exemplos não revelam a natureza assombrosa do poder, natureza em seu estado singular, incomum ou, como diz Gilles Deleuze, em seu estado Anômalo, representado pelo ator Anselmo.

Ficar preso à memória histórica de Ustra e de Fleury importa, mas conhecer palavras que traçam as linhas do rosto de Anselmo significa dizer o entre de que o poder se serve para entregar guerrilheiros à tortura, à morte. Se Ustra e Fleury representam a morte nos calabouços da ditadura militar, cabo Anselmo é o caminho que conduziu a ela, estando entre o começo e o fim. Tudo ocorre no meio. Tudo se torna perigoso entre.

Caso você assista ao documentário "Em busca de Anselmo", perceba o sorriso do Anômalo; perceba sua expressão facial de vitória sobre a luta dualista, maniqueísta ou binária da guerrilha. Como diria Nietzsche, Anselmo está para além do bem e do mal e, porque dança acima do dualismo, o ator Anselmo viveu, durante um ano, com sua inimiga guerrilheira sob o mesmo teto em Recife, ou seja, o poder de que se serviu a ditadura militar criou laços afetivos no cotidiano do "lar-doce-lar": Anselmo amou a inimiga, e a inimiga amou Anselmo. Em nome do sentimento, a guerrilheira Soledad Barret ficou grávida, e Anselmo a entregou à morte.

Representando o que pulsa de mais refinado na microfísica do poder ou no poder molecular, o ator Anselmo é linha de fuga a serviço do Estado militar. Até hoje, as imagens "Em busca de Anselmo" me assustam, e o responsável por isso é seu diretor e roteirista, Carlos Alberto Jr, que nos revela como o poder-entre, representado pelo rosto-palavra do cabo Anselmo, levou à morte vários guerrilheiros. Se o poder-contra é a forma mais pobre de poder, é porque, diferente do poder-entre, não tem a potência do falso.