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Paulo-Roberto Andel: Meia noite no Brasil

É meia noite no Brasil, e tusso como se estivesse à beira da morte - eu gostaria, mas ainda tenho coisas a fazer. Não posso morrer agora, tenho muitas dívidas. | Foto: Carlos Monteiro

Há um silêncio enorme, mas se compreende: por aqui não há fuzis disparando e humilhando as pessoas. No máximo um ou outro ônibus do início da madrugada.

É meia noite no Brasil, e tusso como se estivesse à beira da morte - eu gostaria, mas ainda tenho coisas a fazer. Não posso morrer agora, tenho muitas dívidas.

Meu amor dorme, como diz uma canção. Mas ele também está espatifado feito o crânio de uma vítima das incursões policiais.

[Meu amor dorme ao relento, abandonado numa calçada de uma cidade que despreza e humilha seus habitantes - eu também sou muito humilhado.

Meia noite no Brasil e daqui a pouco um monte de gente lutadora estará de pé, para intermináveis jornadas de trem ou ônibus até o trabalho - e lembro de quando eu era pobre mas tinha direito de cursar uma faculdade pública, com garotos e garotas pobres que hoje desprezam suas origens e namoram Miami - oh, cafonice explícita, Senhor!

[Meu amor está na beira de uma janela, pensando em cair para sempre e adormecer sua dor - mas isso não deixa mais pessoas tristes?

O silêncio da madrugada contrasta a ardência das minhas pernas, enquanto sonho coisas que não quero mais dizer, já que são desprezadas por todos. Sim, nós vivemos a era do desprezo e nossos quadros mais hipócritas têm sempre respostas a respeito na ponta da língua. É uma maneira de relaxar a própria escrotidão.

Meu amor tem os olhos arregalados de medo porque vê o subsolo da cidade e sabe do sufoco que se trata.

É certo que na Graça Aranha um papelão grande serve de colchão para uma família inteira sem perspectivas, sem ordem nem progresso - são apátridas, odiados por alguns transeuntes, ignorados por terninhos e tailleurs. Não há bolas de ferro nem chicotes nas calçadas, mas todo mundo sabe que, jogados à própria sorte, há muito mais gente preta do que qualquer outra coisa. Os escravos do capitalismo são descendentes dos escravos do colonialismo.

[Meu amor dorme em 1984 ou 1995, tanto faz. Tudo é distância irrecuperável.

Uma solitária motocicleta ronca ao cruzar a Cruz Vermelha. Eu não tenho com quem brincar, voltar a ser criança por um instante, então brinco sozinho e aposto comigo mesmo quando passará uma outra moto.

Eu tenho dores. Muitas dores, há muito tempo, e as carrego como uma mochila pesada - às vezes me alivio.

E acho graça das pessoas falsas que me livrei nos últimos anos. É divertido vê-las como se fossem pessoas muito importantes, porque é assim que posam em público, mas sabendo que tudo é farsa e patética aparência. Alguma coisa precisa ter graça. Algumas.

É meia noite no Brasil e minha tosse incessante disfarça meu choro que, cá entre nós, não incomoda ninguém. As pessoas não estão nem aí para isso, pois.

[Quando der uma da manhã, eu morro e renasço na hora do café. Qualquer dia eu volto.