O universo de Camões chega ao cordel

Adaptação de 'Os Lusíadas, marco da poesia em língua portuguesa, ganha versão em braille

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Cego há 11 anos, Assis Ângelo, jornalista e pesquisador, escreveu mentalmente as 247 estrofes do cordel

Opoeta, jornalista e historiador de cultura popular Assis Ângelo lançou, em braile, sua adaptação em cordel de "Os Lusíadas". Batizada como "A Fabulosa Viagem de Vasco da Gama", a obra está sendo lançada em duas versões, ambas em formato de revista. Uma comum e a outra com os pontilhados em relevo do braile, para cegos, e tinta com fonte ampliada, para pessoas com baixa visão.

Ângelo, de 71 anos e que está cego há 11 anos, criou os versos em cordel após escutar uma um audiolivro da obra máxima do português Luís Vaz de Camões.

Além de marcar os 500 anos do (provável) nascimento do poeta, em 2024 também se comemoram os 200 anos em que o francês Louis Braille, com apenas 16 anos de idade, apresentou seu sistema de leitura para cegos. Assis Ângelo escreveu mentalmente 247 estrofes de seis versos cada, todas elas com rimas em "ar" e sempre terminando com a palavra "mar" na última linha. Depois as gravou, e elas foram colocadas no papel por amigos.

"Aqui neste ambiente/ Eu venho para contar/ A história de um homem/ De força espetacular/ Que nunca fugiu à luta/ Nem na terra nem no mar", começa o paraibano, na primeira estrofe.

Dono de uma vasta biblioteca de cultura popular, que inclui cerca de 8.000 folhetos de cordel, em seu apartamento nos Campos Elíseos, na região central de São Paulo, o paraibano diz que, apesar de sua versão ser menor que "Os Lusíadas" (são 1.102 estrofes com oito versos), todos os personagens da obra aparecem em sua versão.

"E criei dois repentistas, que abrem e finalizam a saga", contou ele nesta quinta, enquanto dava um pause na audição de "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley.

"Vejo essa obra como um presente para aqueles que nasceram sem visão e para aqueles que a perderam, como eu", afirmou o poeta, que teve descolamento de retina. Segundo dados do IBGE, em 2010 o Brasil tinha 506 mil cegos e outra 6 milhões de pessoas com baixa visão.

A publicação do livro é resultado de um projeto desenvolvido pela Casa de Conteúdo que contou com recursos do Proac, o Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo. Já o Memorial da América Latina é correalizador do evento gratuito desta sexta.

Segundo Sylvia Jardim, da Casa de Conteúdo, foram impressos 150 exemplares em braile para doação para instituições de todo o Brasil. Já a versão comum deve ser oferecida por demanda em site de impressão, com entrega em casa, por cerca de R$ 45. O audiolivro ainda não tem o preço definido, mas será gratuito para entidades que trabalham com deficientes visuais.

"Vejo 'A Fabulosa Viagem' como uma montagem teatral", diz a produtora cultural, indo ao encontro de um desejo de Ângelo, que vê sua obra como uma ópera popular.

"O que eu mais gostaria que acontecesse é que essa ópera chegasse aos palcos, com cada personagem sendo interpretado por atores, músicos e bailarinos cantando essa fabulosa viagem em formato de cordel", disse o autor.