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Malandragem, boêmia e resistência

Cartola, Darcy da Mangueira, Donga e Clementina de Jesus | Foto: Reprodução

Por Affonso Nunes

Em seu célebre samba, Nelson Sargento cantava que o "samba agoniza, mas não morre". O bamba se referia aos altos e baixos enfrentados pelos que se devotavam a ele. Mas os tempos são outros. Mais forte do que nunca, o samba está lépido e fagueiro e com a eterna capacidade de se renovar. O samba possui raízes profundas, entrelaça elementos da cultura africana, indígena e europeia. Nada mais brasileiro, portanto. Sua história é marcada por resistência, criatividade e uma constante evolução. As primeiras manifestações do samba podem ser traçadas até os batuques e rodas de dança realizadas por escravizados africanos que cheagavam ao país. Apesar de todas as adversidades provocadas por essa violenta diáspora que extraía homens, mulheres e crianças do continente africano, estamos falando de um povo forte e resiliente com uma forte herança cultural centrada na música e na dança.

Já em terras brasileiras, esses encontros eram momentos de celebração, resistência e expressão cultural, onde ritmos e movimentos corporais eram transmitidos de geração em geração. Instrumentos de percussão como o atabaque eram o ponto de partida do ponto de vista rítmico.

Com a abolição da escravatura e a crescente urbanização do início do século 20, muitos desses afro-brasileiros migraram para os centros urbanos, levando consigo suas tradições musicais. No Rio de Janeiro, em especial, esses ritmos se mesclaram a outros gêneros musicais, como a polca, a valsa e o maxixe e o lundu.

Os primeiros sambistas eram, em sua maioria, moradores de comunidades carentes, que utilizavam a música como forma de expressão e resistência. As rodas de samba e de choro que aconteciam em ruas e vielas, eram espaços de encontro e troca cultural.

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Cartola, Darcy da Mangueira, Donga, Lygia Santos e Clementina de Jesus | Foto: Acervo Donga

Mas nem tudo era festa. A polícia reprimia músicos e capoeiristas. E as rodas foram se transferindo para dentro das casas.

A baiana Tia Ciata abrigava essas rodas e tem seu nome gravado na história do samba. Cozinheira de mão cheia e portadora da herança cultural afro-brasileira, fez de sua casa no número 119 da Rua Visconde de Itaúna, na Praça Onze, (rua extinta pela abertura da Avenida Presidente Vargas) um celeiro de talentos e ponto de encontro para os principais nomes do samba naquela época. Naquele espaço acolhedor e vibrante, música, dança e a cultura popular se misturavam.

Entre os frequentadores mais assíduos estavam músicos como Pixinguinha, Sinhô, Donga, João da Baiana e muitos outros. Esses artistas, que mais tarde se tornariam lendas do samba, encontravam na casa de Tia Ciata um ambiente propício para a criação e a troca de ideias. Foi lá que Donga compôs, em 1916, "Pelo Telefone", o primeiro samba gravado. E lá João da Baiana introduz o pandeiro no samba.

A casa também atraía poetas e intelectuais, que encontravam inspiração na música e na energia vibrante do lugar. Entre eles estava o maestro Heitor Villa-Lobos.

A partir da década de 1920, o samba alcança destaque nacional, indo além dos quintais e terreiros. Tudo impulsionado pela criação das escolas de samba e pela difusão do ritmo no rádio, que dava seus primeiros passos. Os desfiles carnavalescos, com suas alegorias e músicas, transformaram o samba em um símbolo da cultura brasileira.

Outro ponto alto do período foi o surgimento dos Oito Batutas, grupo formado em 1919 por alguns dos maiores músicos da época, como Pixinguinha, Donga e João Pernambuco. Eles introduziram novas sonoridades no samba, como a utilização de instrumentos de sopro e a influência de outros ritmos como o jazz. A passagem dos Oito Batutas por Paris em 1922 foi um marco histórico para a música brasileira. Enquanto no Brasil a Semana de Arte Moderna acontecia em São Paulo, no outro lado do Atlântico, sete dos oito músicos embarcavam em uma jornada que os levaria a conquistar o público parisiense e a levar o samba para o mundo.

O samba moderno surge no fim da década de 1920, pelas mãos de Ismael Silva e os irmãos Bide e Mano Rubem, que contrapunha o samba tradicional, mais ligado às raízes africanas e rurais, trouxe uma sonoridade mais urbana e dançante, transformando o samba em um dos ritmos mais populares do país. É a introdução do surdo de repique numa batida familiar até os dias de hoje.

Outro sambista de renome do fim da década de 1920 foi Noel Rosa, conhecido tanto por sambas melancólicos quanto por crônicas da vita cotidiana. Dorival Caymmi e Ary Barroso também são nomes importantes na história do samba.

Nas décadas seguintes, principalmente na Era Vargas, marcada pelo nacionalismo e a valorização da cultura popular, o samba se consolida, ganha ares de patrimônio nacional. Compositores como Noel Rosa e Pixinguinha se tornaram grandes nomes da música brasileira, compondo sambas que falavam sobre o amor, a vida cotidiana e as lutas do povo pobre. Além do samba, Pixinguinha consgrava-se como o grande nome do choro. Cartola começava a compor seus primeiros sambas.

Mas o gênero viria a ser "ofuscado" a partir dos anos 1950 com o advento da Bossa Nova, um estilo musical baseado na própria cadência do samba, mas que incorporou harmonias mais sofisticadas, com o sotaque da Zona Sul carioca. Eram tempos de desenvolvimentismo, a era JK, e o samba passava a ser visto como uma manifestação do morro.

Apesar da ascensão da bossa nova e de outros gêneros musicais, o samba resistiu e conseguiu se reinventar. O surgimento do movimento negro organizado no país reafirmava o gênero como fator fundamental da identidade e cultura afro-brasileira, passando a ser visto como um instrumento de luta e resistência.

A estética do samba viria a ser abraçada por artistas como Chico Buarque, Elis Regina e Nara Leão (que participou do emblemático espetáculo Opinião, com João do Vale e Zé Kéti, redimensionando a música popular num contexto de oposição ao reguime militar).

E as escolas de samba, que já existiam desde a década de 1920, ganharam um novo impulso naquela década. Seus desfiles passaram a ser cada vez mais elaborados e temáticos, abordando questões sociais e políticas e reforçando a identidade negra. O espetáculo tornou-se marca registrada carioca a ponto de se espalhar pelas mais variadas regiões brasileiras.

Nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento voltam a ser badalados e inspiram uma nova geração de sambistas como Candeia, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Clara Nunes, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro, Lecy Brandão, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Alcione e João Nogueira.

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Beth Carvalho revelou novos talentos e tornou-se a madrinha do samba | Foto: Divulgação

João Nogueira escreve capítulo importante dessa história. Em 1979 -, quando o samba e a própria MPB se viam ofuscado pela música internacional que passava a dominar o rádio, sobretudo a disco music -, ele se junta a Martinho da Vila, Alcione e Beth Carvalho para fundar o Clube do Samba, reuniões no quintal da casa de João no Méier com aquele mesmo espírito das rodas de samba na casa da Tia Ciata. Com o tempo, o Clube do Samba ganhou cada vez mais força e passou a realizar eventos em locais maiores, como a sede do Flamengo, no Morro da Viúva.

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Zeca Pagodinho, ídolo atual | Foto: Leo Aversa/Divulgação

Além de grande intérprete, Beth Carvalho teve papel fundamental para a valorização do samba. Descobridora de talentos, a cantora foi responsável por revelar diversos talentos do samba, como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Jorge Aragão. Ao gravar suas composições, ela deu visibilidade a esses artistas e contribuiu para a popularização do pagode.

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O classudo Paulinho da Viola | Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

Se no passado remoto, o sambista era um cidadão marginalizado, hoje nomes como Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Diogo Nogueira (filho de João Nogueira) e Maria Rita (a filha de Elis Regina) têm status de popstar, arrastando multidões em suas apresentações no Brasil e no exterior.