Por: Rodrigo Fonseca Especial para o Correio da Manhã

'A inteligência artificial vai transformar os arquivos em sucata'

Diretor de grandes documentários de nossa filmografia, Silvio Tendler lança olhar inquieto sobre as consequências da Inteligência Artificial em obras de não-ficção | Foto: Caliban/Divulgação

Ao comemorar seus 75 anos, no último dia 12, já recobrado de uma série de complicações de saúde, Silvio Tendler trouxe o debate sobre a morte anunciada do arquivo - tal qual o cinema documental entende essa palavra -, em meio à hegemonia gradual da Inteligência Artificial. O Correio da Manhã foi atrás do realizador - o papa do cinema documental brasileiro - para descobrir a data de estreia de seu "Brizola - Anotações Para Uma História" (exibido pelo diretor em outubro, no Festival do Rio).

Soube que o lançamento ficou para o final de junho, mas acabou saindo do papo com uma reflexão sobre a reinvenção tecnológica das narrativas de não ficção. Espera-se que a inquietação tendleriana sobre IA já se faça notar, ao menos na forma, em "Justiça em Estado de Exceção", seu próximo documentário. O filme discute o papel do Poder Judiciário e dos meios de comunicação na conjuntura política do país. A quem eles se submetem? À Constituição Federal?

Esse longa completa uma trilogia de Tendler formada por "Privatizações, a Distopia do Capital", de 2014, e "Dedo na Ferida" (Prêmio de Júri Popular na Première Brasil 2017). Trata-se de uma análise do sistema que financia e instrumentaliza um projeto de poder predatório. Continua na página seguinte

 

'A verdade vai aflorar com outras tecnologias'

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O documentarista Silvio Tendler | Foto: Caliban/Divulgação

Não é só os desafios impostos pela IA que capturam a atenção do único documentarista brasileiro a cruzar a marca do blockbuster e emplacar uma bilheteria na faixa do milhão com o filme "O Mundo Mágico dos Trapalhões", (1981). Na entrevista a seguir, o realizador de "Anos JK" (1980) e "Jango" (1984) antecipa suas próximas criações.

A sessão de "Brizola - Anotações Para Uma História" foi um acontecimento no Festival do Rio. Qual é o maior simbolismo do político gaúcho para a sua geração e qual é o legado dele?

Silvio Tendler: O maior simbolismo do Brizola foi o arrojo, a coragem e a ousadia de nacionalizar a eletricidade da Light e a telefonia da ITT, criar o Banco Regional (BRDE) para fazer frente ao BNDES que não financiava o Sul. O BRDE, que hoje a Ancine utiliza, foi criada pelo Brizola para gerir recursos para Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Brizola criou uma Caixa Econômica Estadual com 16 agências, em 16 municípios, onde cada município decidia o que fazer da sua poupança. É a coisa mais revolucionária que existe hoje. A Alemanha hoje está fazendo pequenos bancos municipais. Nos Estados Unidos, existem 4 mil bancos. Essa concentração de rendas foi depois do Brizola. Ele foi contra a privatização dos bancos estaduais. Em seu projeto de educação, ele construiu, no Rio Grande do Sul, as Brizoletas, escolas para crianças que não tinham acesso a colégios perto de casa. Deu alpargatas e sapatos para as crianças que iam a aula descalças. Aqui no Rio, ele fez mais de 500 CIEPs, além do Sambódromo, da Linha Vermelha. Quem diz que o Brizola não fez nada é porque não está entendendo nada.

De que maneira filmes como "Brizola" traduzem o seu olhar sobre arquivos? De que maneira documentário e memória se misturam nesses registros?

Está cada dia mais difícil fazer filmes de arquivo. Os detentores dos arquivos estão cobrando cada dia mais caro. Isso é um fenômeno universal. Fui comprar arquivo na TV Cultura, do Brizola no "Roda Viva", e um gestor me falou: "Arquivo de morto é mais caro, sete mil reais um minuto". Só que eles não perdem por esperar, porque a inteligência artificial vai transformar os arquivos em sucata. Daqui para frente, a verdade e a construção da memória não poderão abrir mão das novas tecnologias da reconstrução dessa memória, com novas técnicas narrativas. Já no "Brizola" eu utilizo animação. Assim, eu converso com jovens. Daqui para frente, a cada dia, os arquivos serão menos necessários e a verdade vai aflorar com outras tecnologias.

Como pode se dar esse novo caminho da tecnologia para o documentário?

O cineasta francês André Heinrich, assistente de direção de Alain Resnais em "Noite e Neblina", trabalhou também com Jean Rouch, na produção de "Crônica de um Verão". É um criador de linguagem no cinema. Entrevistei-o no começo dos anos 2000, e ele tinha tudo de União Soviética: filmes, programas de TV, fitas. Guardava esses registros por acreditar que esse mundo estava acabando. Tudo ia desaparecer e nada ia ficar na memória. Na conversa, ele me disse: "Olha, daqui a pouco, as pessoas vão dizer que os campos de concentração não existiram. Dirão que tudo aquilo é representação, que aqueles mortos são manequins, que aquilo ali foi recriado, que as pessoas magras, com aqueles pijamas, são atores". Essa conversa já tem, pelo menos, uns 17 anos. A memória vai se esfacelar por conta desse negacionismo que ele previu, 20 anos atrás. Hoje, a gente está vendo a reconstrução da verdade, pela memória. Daqui para frente, a preservação da memória terá de utilizar as novas tecnologias, sobretudo, a inteligência artificial. Eu estou me preparando para essa nova era com novos projetos.

Como funciona, depois de quase cinco décadas de dedicação aos longas-metragens, a sua forma de pensar a dramaturgia do cinema? Onde é que a política e a sociologia norteiam a sua forma de pensar os filmes?

A política sempre norteou meus filmes, assim como a História e a Geografia. A Sociologia muito pouco. Eu não consigo dominar as teorias sociológicas. Já a Geografia, sim, via Milton Santos, via Josué de Castro e via Carlos Walter Porto-Gonçalves, que são meus gurus. São pessoas que me influenciaram bastante. O cinema me influencia via Chris Marker, André Heinrich, Jean Rouch, Vladimir Carvalho. Esses diretores são fundamentais na minha vida, assim como Olney São Paulo, Sérgio Muniz, João Batista de Andrade. A eles, eu estou aqui dizendo presente sempre.

Que novos projetos você planeja para 2025?

Eu estou fazendo agora um projeto chamado "Na Outra Ponta Da Humanidade, A Fome" e estou preparando "Estrada Sem Fim", um projeto de três filmes inspirado nos longas do (cineasta chileno) Patrício Guzmán, como (o tríptico) "Batalha do Chile", com episódios que vão da Pangeia ao dia seguinte ao fim do mundo. O primeiro episódio vai até 1988, com a Constituinte. O segundo começa com as eleições de 1989 - a primeira eleição em que eu votei, aos 39 anos - e vai até o bolsonarismo. O terceiro episódio trata do que é o socialismo, do que é o futuro. Então, com esses projetos, eu dou o pontapé inicial na minha luta pela verdade histórica e por um futuro radiante para nós todos.