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A fantasia pede diversidade

Por Matheus Rocha (Folhapress)

Os tambores ressoam e as portas se abrem. "Lorde Corlys, da Casa Velaryon", anuncia o arauto. Nobres ficam de pé em sinal de respeito. A família mais rica de Westeros caminha com altivez, enquanto aplausos ecoam pelo Grande Salão. A cena da série "A Casa do Dragão" marca um momento importante dentro da trama, mas também fora dela. A entrada cheia de imponência da família Velaryon coroa uma onda de filmes e séries de fantasia em que atores negros conquistaram papéis de destaque após desafiarem o racismo da indústria audiovisual.

Os exemplos vão das séries "Os Anéis de Poder", "Wandinha" e "Sandman", passando por filmes como "Peter Pan & Wendy", "A Pequena Sereia" e "Pantera Negra: Wakanda Para Sempre". São histórias em que atrizes e atores negros dão vida a fadas, elfos, sereias e príncipes. Mas nem sempre foi assim.

"Filmes de fantasia se passam em um mundo de magia onde tudo é possível. Apesar disso, por muito tempo, esses mundos foram dominados por personagens brancos", diz Lin-Manuel Miranda, compositor e produtor do live-action de "A Pequena Sereia". "Ver uma atriz negra interpretando uma personagem como a Ariel expande a nossa ideia sobre o que é possível e sobre quem pode ser nossos heróis. Mostra que qualquer um consegue ser um personagem mágico, independentemente de raça ou etnia", diz.

A psicanalista Elisama Santos diz que a diversidade na fantasia de fato amplia os referenciais de jovens negros e os ajuda a entender que podem ter o encanto de uma princesa ou a coragem de uma heroína. "A criança passa a perceber que a beleza não mora somente num corpo que é diferente do dela. A beleza também está nela, em seus cabelos crespos e lábios carnudos", comenta a especialista.

Em setembro do ano passado, a reação de jovens negros ao teaser de "A Pequena Sereia" viralizou nas redes sociais. Em alguns dos vídeos, crianças gritam de alegria quando descobrem que Ariel é negra, outras choram de emoção.

Por outro lado, Elisama diz que conteúdos pouco diversos criam a ideia de que determinados papéis e lugares devem ser ocupados apenas por pessoas brancas.

A atriz Halle Bailey se tornou alvo de ataques racistas assim que foi anunciada como protagonista de "A Pequena Sereia", em 2019. À época, recebeu críticas por não se parecer com a personagem do filme de animação, lançado em 1989. A hashtag #NotMyAriel (Não é minha Ariel) circula na internet desde então. "Como uma pessoa negra, você já espera isso e não é mais um choque", disse ela. "As pessoas não entendem que, quando você é negro, existe toda uma outra comunidade. É importante para nós vermos uns aos outros."

Situação parecida viveu o ator Steve Toussaint, que interpreta Corlys Velaryon na série "A Casa do Dragão". Fãs de "As Crônicas de Gelo e Fogo" - obra que deu origem à série - criticaram a escalação do ator argumentando que os Velaryon tinham pele branca, cabelos pálidos e olhos roxos nos livros de George R. R. Martin.

"Essas pessoas estão satisfeitas com dragões voando e personagens de cabelo branco e olhos cor de violeta. Mas um cara negro e rico? Isso sim é inaceitável pra elas", disse Toussaint.

Já o ator Ismael Cruz Córdova afirmou em 2022 à revista Esquire que recebia ataques quase diários nas redes sociais por ter sido escolhido para viver o elfo Arondir na série "Os Anéis de Poder".

A fantasia passou décadas como um gênero majoritariamente branco. Na série de filmes "Harry Potter", personagens negros são minoria e têm pouco destaque no desenvolvimento da trama.

O mesmo vale para a trilogia "O Senhor dos Anéis", o filme "A Bússola de Ouro" e a série "Game of Thrones", só para citar alguns exemplos.

"A cultura popular do Ocidente tende, em geral, a ser muito branca e pouco diversa", diz a pesquisadora Helen Young, autora de "Raça e Fantasia Popular: Hábitos da Branquitude" - sem tradução para o português.

A especialista diz que livros de autores como J. R. R. Tolkien, Robert E. Howard e H. P. Lovecraft ajudaram a construir esse cenário de escassa diversidade.

"O mundo que eles criaram era altamente eurocêntrico e racista. O herói branco, cisgênero e heterossexual se tornou padrão no gênero em parte pela imitação do trabalho desses autores", diz Young, que é professora de literatura da Universidade Deakin, na Austrália.

No caso de Tolkien, a pesquisadora diz que a Terra Média reproduz estereótipos e hierarquias raciais presentes no mundo real. Segundo ela, os vilões da história ganham vida a partir de características de pessoas negras, asiáticas e do Oriente Médio.

Em uma carta, Tolkien descreve os Orcs - criaturas monstruosas da Terra Média - como "versões degradadas e repulsivas dos mongóis menos adoráveis".

"Isso reforça narrativas sociais e culturais de que pessoas não brancas são perigosas e ameaçadoras", diz Young.

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