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'Kagemusha' do Morro dos Prazeres

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

De maneira orgânica, quase casual, a câmera da diretora de fotografia Laura Merians sempre fita olhares em "Pacificado", desde os planos iniciais do Morro dos Prazeres, sempre medindo a investigação geopolítica do realizador Paxton Winters. Seu obturador abre e fecha à luz das periferias cariocas como se buscasse mesurar a dimensão trágica do Rio de Janeiro de 2016 - data que se sobressai na narrativa por indícios espaciais.

À frente de suas lentes, aparece o desmanche da estrutura montada para os Jogos Olímpicos. O primeiro olhar que grita em cena é o de Léa Garcia, como Dona Preta, ou só Vó, a fiel Vó de Jaca, apelido do protagonista, uma espécie de samurai da favela, um ex-líder do tráfico, "bicho solto", de quem só sobrou uma sombra, qual o "Kagemusha", que rendeu a Palma de Ouro a Akira Kurosawa.

Dona Preta é também bisa de Tati, personagem de Cássia Gil, menina que desenha essa história emotiva de reeducação dos quereres laureada com a Concha de Ouro no Festival de San Sebastián, na Espanha, em 2019. Jaca rendeu a láurea de Melhor Ator a Bukassa Kabengele e Laura ainda papou um troféu por seu arranjo fotográfico.

Esse arranjo flagra o olhar de maré branda de Tati, que logo se faz molhar… marejando sonhos despedaçados por toda a sorte de demanda e de agressões de sua mãe, Andréa (Débora Nascimento, em um desempenho avassalador). Esta também esbugalha a pólvora que reside em sua retina… retinas dilatadas por carreiras e mais carreiras de pó e pela esperança vã de ter um lote de terra à sua espera em São Paulo. Andréa é um corpo que definha… corpo desejado por muitos personagens mas que, já nos momentos iniciais do filme, revela um terçol digno de Capitu… na ressaca de um determinismo que Winters estuda quadro após quadro. Esse organismo que entra em entropia em cena dimensiona a grandeza de sua intérprete.

O que vemos em "Pacificado" é o processo de redesenho da família de Tati depois que Jaca, o pai com quem nunca conviveu sai do cárcere disposto a mudar de vid. Mas mudanças custam caro para os trabalhadores do pó no RJ. Mas o preço a se pagar pela reinvenção justifica todo e qualquer calvário. É o que acompanhamos neste thriller caudaloso, que é um hino de amor aos Prazeres, cujos moradores delinearam a trama para Paxton.

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