Por:

Estação Fellini

Nascido em Rimini, em 1920, Fellini morreu três décadas atrás deixando um legado de sonhos | Foto: Reprodução

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Indicado a 12 Oscars, entre 1947 e 1977, Federico Fellini (1920-1993) ganhou uma estatueta honorária da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood no ano em que morreu, três décadas atrás, num 31 de outubro que deixou o cinema órfão de sua habilidade de usar o sonho para nos fazer despertar.

Cannes deu a ele uma Palma de Ouro, por "A Doce Vida", em 1960, e o Prêmio do 40º Aniversário a "Entrevista", em 1987. Já o Festival de Veneza presenteou o demiurgo de Rimini (cidade da costa adriática, na região Emilia-Romagna) com um par de Leões de Prata, dados a "La Strada - A Estrada da Vida" (1954) (que também ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro) e a "Os Boas Vidas" (1953).

Numa aritmética rápida das honrarias internacionais que ganhou, somadas a troféus que ganhou em sua Itália de berço, ele contabilizou 68 láureas ao todo, sem contar o prestígio do planisfério cinéfilo em peso, que celebra seu legado como um patrimônio imortal das artes. Uma nova celebração de sua obra vai mobilizar a telona do Estação Net Botafogo a partir desta quinta-feira, com uma projeção de "Noites de Cabíria" (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1958), às 14h. A sessão inaugura uma retrospectiva em tela grande das joias fellinianas. Vai até dia 12 de julho, projetando quatro longas por dia.

"Minha melhor memória afetiva de cinema do Fellini é do filme 'Amarcord', em que fiquei fascinada com tudo: fotografia, personagens, cenários, música…", conta a cineasta Sabrina Fidalgo, em meio às filmagens do longa "Time To Change". "O que me pegou mesmo foi a incrível capacidade de ele (re)criar uma atmosfera única, nostálgica e lúdica daquela cidade fictícia que remete à sua terra natal, Rimini. Nota-se o talento enorme daquele mestre ao escrever e dirigir um filme no qual temos um painel com tantos personagens inesquecíveis".

Ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, "Amarcord" (1973) terá sessão nesta sexta às 18h10, e neste domingo, às 16h50. É uma espécie de síntese de um cineasta que dizia: "Assim como a pérola é a autobiografia da ostra, todo filme é a autobiografia de quem o dirige".

"Fellini é um diretor de múltiplos talentos: desenha, cuida da música... tudo sabe e o faz muito bem", elogia a diretora e atriz Ana Maria Magalhães. "Desde 'La Strada', sou sua admiradora. Destaco imagens como o plano final de 'La Dolce Vita', com Marcello Mastroianni chegando na praia, e a beleza indescritível de 'Os Palhaços'. Tudo é muito rico, criativo, com uma filosofia por trás. Lembro assim de uma sequência de 'Satyricon' onde vemos uma mulher vestida de roxo, super maquiada, que diz: 'Veramente, io sono um po cafona'".

Novas gerações vão ter a chance de conferir na telona a atuação de Giulietta Masina (1921-1994), diva e companheira de vida de Fellini por cinco décadas, em clássicos como "Julieta dos Espíritos" (1957), que será exibido amanhã, às 16h40, no Estação.

"Fellini, para a minha geração, foi um primeiro movimento de desconstrução da narrativa fílmica", diz a professora de Letras da UFRJ Beatriz Resende. "Quando ele estreia, a gente saía de um tipo de cinema não só bem comportado, mas bem estruturado, enquanto narrativa por imagem. Fellini vem e mistura tudo. Agora, o mais importante talvez tenha sido ele mexer com os mitos de classe média, tais como o comportamento da mulher, o papel fundamental da mama. É muito interessante ver hoje seu 'A Doce Vida'. Não existem mais aquelas ruas, aqueles personagens. Realmente La Dolce Vita acabou na Itália. Fica até curioso vermos novamente esse filme e se perguntar cadê os galãs e os playboys. O contemporâneo modificou isso tudo".

Curador do Festival de Locarno, o crítico suíço Giona A. Nazzaro defende que "Fellini é cinema". "Ele brota das transformações culturais do fim da II Guerra na Itália, pelas vias do jornalismo satírico e se gradua como realizador por meio de suas parcerias com Roberto Rossellini e Alberto Lattuada, das quais sai um cineasta completo. Poucos diretores tiveram seu nome transformado num adjetivo. Ele teve. É um mestre do frame, um mestre da edição não linear, é um mestre em justaposições não dissonantes. Foi o cineasta que trouxe o inconsciente pra imagem".

Durante a Mostra Fellini, Cavi Borges, diretor, produtor e agitador cultural por trás dos eventos do Estação (ao lado da exibidora Adriana Rattes), vai badalar o precioso livro da escritora e crítica Mariza Gualano sobre o diretor. Na pandemia, ela lançou "Para Fellini, Com Amor", ilustrado por Roberta Maya com um belíssimo traço que revisita clássicos do cineasta.

"Os diálogos dos filmes de Fellini, assim como a imagética, não economizam (e, muito menos) escondem as menções e referências a todos os valores caros que atravessaram a vida do diretor. Aí reside sua potência. Suas falas são impregnadas de elementos oníricos, fantasia, amor ao prazer, ao sexo, à arte e à decadência, que adquire status de grandeza em sua obra. O apreço pelo circo, pelo campo, pelas estações do ano e pelas pequenas coisas da natureza também falam alto", diz Mariza, num inventário cinéfilo de alumbramentos.

Fã do mágico Mandrake das HQs de Lee Falk (1911-1999), Fellini tira parte de sua potência visual das experiências que teve nas artes gráficas. É o que lembra o animador Marão. "Assisto Fellini como se estivesse lendo quadrinhos. Desde bem jovem algo nos seus filmes gerava uma fascinação que me atraía intimamente e me deixava muito confortável nas cenas mais improváveis. Há pouco tempo atinei: eu estava virando páginas de uma história em quadrinhos. Os filmes de Fellini são quadrinhos. E isso faz eu me sentir em casa".