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Versão brasileira: resiliência

Hélio Ribeiro, voz oficial de Robert De Niro no país, foi substituído em 'Assassinos da Lua das Flores' | Foto: Rodrigo Fonseca

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Responsável por fazer o Homem-Aranha dos anos 2020 (Tom Holland) falar português na tela grande, o ator Wirley Contaifer, de Duque de Caxias, mobilizou fãs em todo o Rio de Janeiro e arrastou uma multidão para o UCI New York City Center, na Barra no sábado passado, a fim de promover uma reverência a um grupo de meninas e meninas que emprestam as vozes ao longa animado "As Tartarugas Ninja - Caos Mutante". Victor Hugo Fernandes, Rodrigo Ribeiro, Arthur Carneiro e Enzo Dannemann dublam os quelônios caratecas e Any Gabrielly cede o gogó à repórter April O'Neill.

Foi uma festa comovente que exaltou o apoio da rede UCI à formação de plateia, a boa curadoria da Paramount, mas, em especial, a luta de uma classe de artistas alvo de toda a sorte de violência moral neste país.

Dublar é padecer no paraíso da excelência, da alfabetização audiovisual do Brasil, mas, também é sofrer preconceitos e falta de respeito profissional. Recentemente, filmes com Liam Neeson ("A Chamada") e Jason Statham (o fenômeno "MegaTubarão 2"), atores tradicionalmente dublados pelo paulista Armando Tiraboschi, foram confiados a outras vozes, o que gerou ruído, apesar do talento desses substitutos.

Uma grita se deu na web com a notícia de que Hélio Ribeiro não foi chamado para dublar Robert De Niro (seu "boneco" há três décadas) por conta de um teste, no qual Guilherme Lopes ficou foi eleito o dublador do astro em "Assassinos da Lua das Flores". Usa-se o termo "boneco" para a relação de recorrência entre dubladoras e dubladores com atores e atrizes estrangeiros. Guilherme fez um trabalho esplendoroso este ano como Russell Crowe em "O Exorcista do Papa" e, pelo que se nota costumeiramente, seu trabalho é notável. O que está em questão aqui não é seu talento, mas, sim, a desconexão de Hélio com De Niro, o que representa uma traição histórica para com os espectadores que apreciam (ou necessitam da dublagem. Inclua aí nesse balaio a inexplicável escalação de Marcelo Pissardini (também competente) para dar voz a Harrison Ford em "Indiana Jones e a Relíquia do Destino". Esqueceram-se de que, pro Brasil, Guilherme Briggs e Garcia Júnior são os titulares de Ford. Em 2022, a vergonhosa dublagem inicial série "Tulsa King", que colocou um ator incompatível com o vozeirão de Stallone, sem considerar a longeva adesão de Luiz Feier Motta ao astro, foi um exemplo disso.

Existe ainda outro perigo, chamado "redublagem", a opção de certos estúdios (quase sempre sob a demandas de TVs ou plataformas de streaming) em substituir versões que se tornaram clássicas por novos elencos. Essa opção mercadológica fez com que a antológica dublagem de "Os Embalos de Sábado à Noite" (1977) - na qual Mario Jorge dava provas de ser um dos mais talentosos atores que esta nação já conheceu - fosse substituída por uma releitura que não se destacou nos tímpanos da gente. E, mesmo que tivesse se destacado, sua realização representa o apagamento de um trabalho que primava pela excelência. O mesmo vale para a redublagem da franquia "Rambo", quando André Filho (gênio do setor, morto em 1997) teve seu falar tirado dos lábios de Sylvester Stallone. Redublar é o mesmo que alguém resolver mudar as tintas de um quadro de Cândido Portinari por acreditar que as pinceladas dele não se adequa aos princípios do olhar dos dias atuais. A absurda redublagem de "Karate Kid" (1984) apaga o legado de Magalhães Graça e de Cleonir dos Santos. É imperdoável esse desmantelo de uma atividade que nos deu tanto.

Desde 1938, quando Dalva de Oliveira emprestou sua aveludada garganta ao filme "Branca de Neve", gerações e gerações do nosso povo devem a ampliação de seu repertório vocabular, se não sua alfabetização, à dublagem. A partir das chamadas feitas por Ricardo Mariano, no bordão "Versão Brasileira: Herbert Richers", o Brasil em peso aprendeu termos que, por vezes, não faziam parte das cartilhas escolares. Termos enriquecidos pela melopeia de atrizes e atores de talento. Divas de Hollywood e de estúdios europeus e asiáticos notabilizaram-se em nosso imaginário sintonizadas aos gogós de Miriam Ficher, Carmen Sheila, Marta Volpiani, Ilka Pinheiro, Cecília Lemes, Súmara Louise, Angela Bonatti e Monica Rossi. Estúdios como a BKS, Peri Filmes do Brasil e Gota Mágica viraram um lar para nossos tímpanos.

Desde janeiro de 1996, quando "Toy Story" estreou por aqui, Marco Ribeiro e Guilherme Briggs serviram de babás a crianças de todo o país, como as vozes do xerife Woody e do astronauta Buzz Lightyear. Alexandre Moreno fez a gente perceber quão talentoso Adam Sandler é e nos deu mil e uma manhas amorosas adaptando os diálogos de "Como Se Fosse a Primeira Vez" pro carioquês.

Na dublagem, a educação sentimental desta pátria vestiu o traje tropicalista da brasilidade, num banho de loja de autoestima e autoafirmação. Mas, apesar de tudo isso, a arte de dublar é uma das manifestações culturais mais castigadas pela ignorância.

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