Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Iniciado em 1973 com a consagração de "Toda Nudez Será Castigada", o Festival de Gramado tem o papel de referendar estéticas, servir de vitrines para lutas políticas (como se viu este ano com a vitória de "Mussum, o Filmis", um afetivo tratado anirracista) e de revelar expressões de verve autoral do Brasil adentro. Foi o que aconteceu em 2022 quando "Noites Alienígenas", um thriller social de CEP acreano ganhou o Kikito de Melhor Filme.
Presente na grade da Netflix, com destaque, o filme é a única expressão do Acre no terreno dos longas-metragens de ficção a ter ultrapassado as fronteiras de seu estado. Nesta quinta-feira, às 18h, a produção poderá ser vista na telona do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ) numa retrospectiva itinerante do garimpo gramadense. O evento começa hoje, às 18h, com a projeção de "Ferrugem", de Aly Muritiba. Na sexta tem "Carro Rei" (2021), de Renata Pinheiro, às 17h. Sábado tem "Pacarrete" (2019), de Allan Deberton. O fecho, no domingo, vai ser "King Kong em Asunción", de Camilo Cavalcante.
Eletrizante, "Noites Alienígenas" foi um dos seis finalistas da comissão responsável pela escolha do representante brasileiro na luta por vaga no Oscar 2024. A produção marca a entrada do Acre no circuito exibidor comercial apoiado numa engenharia sonora acachapante, engatilhada desde a captação feita por Pedro Sá Earp. É pelo som que esse tenso thriller social nos leva numa viagem sensorial por uma Rio Branco, cindida entre o cosmopolitismo e as tradições indígenas milenares, onde o exotismo é sabiamente driblado na direção de Sérgio de Carvalho. Percebem-se em cena traços identitários regionais fortes, sem que se abra mão de uma mirada universal. As incongruências do dia a dia de Rivelino (o impecável Gabriel Knoxx), Sandra (Gleici Damasceno) e Paulo (Adanilo), seus três jovens protagonistas, não são distintas da seca assistencial da juventude das "quebradas" de SP ou do Morro do Adeus, no RJ. Mas a identificação em âmbito nacional que o roteiro (escrito pelo cineasta com Camilo Cavalcante e Rodolfo Minari) gera é a porta de entrada para uma imersão em especificidades locais. Inclua aí cenas rituais dos povos originários - valorizados na montagem eletrizante de André Sampaio - e a discussão sobre a vinda de criminosos do Sudeste, que, em processo de migração, encheram a capital acreana de drogas e desajustes.
Com ares de maluco beleza, impecável na hora de tocar Raul, Alê (um Chico Diaz nas raias do sublime) é um dos sintomas dessa migração desastrosa. Ele mantém Rivelino próximo da contravenção, mesmo sempre alertando o rapaz de que é preciso abrir as portas da percepção. Não se dá com os demais traficantes locais por agir de um jeito brando. Essa brandura facilita (#sqn) a vida de Paulo, rapaz indígena consumido pela droga, que alucina com seres da mata, sem dar atenção ao filho que teve com Sandra (Gleici). Atento à força feminina desse Acre de asperezas e de resiliências, Sérgio de Carvalho no dá uma figura preciosa, Beatriz (Joana Gatis, numa performance de sufocar), mãe de Riva, que afoga seus fantasmas no carimbó sem saber como se preparar para a descida aos infernos que o desemparo social brasileiro lhe reserva.