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'Nossa história vai virar cinema'

Eduardo Albergaria nos sets com Lucas Penteado e Juan Paiva, seus protagonistas | Foto: Angélica Goudinho/Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Sintomáticos do lirismo do funk melody nacional, os versos "Você pra mim é tudo / Minha terra, meu céu, meu mar" podem se tornar uma declaração de amor do cinema brasileiro para o diretor Eduardo Albergaria, a partir desta quinta-feira, caso seu longa-metragem "Nosso Sonho - A História de Claudinho e Buchecha" se transforme no fenômeno popular que está prometendo ser.

Comovente do começo ao fim, sem ser excessivamente melosa um segundo que seja, a produção estreia apostando no carisma da dupla que ajudou a levar a alegria e a resiliência das periferias cariocas para a música. À luz elegante da fotografia de João Atala, Lucas Penteado e Juan Paiva encarnam os bardos românticos por trás de "Só Love" e "Fico Assim Sem Você".

Não por acaso, ao longo de uma carreira meteórica, interrompida pela morte de Claudinho (num acidente de carro em 2002), os dois cantaram: "Nossa história vai virar cinema / E a gente vai passar em Hollywood, mas / Se ninguém gostar não tem problema/ Meu bem um grande amor / Não há quem mude".

Fundador da produtora Urca Filmes, usina de séries e documentários, Albergaria despontou na direção com o curta-metragem "Achados e Perdidos" e estreou na direção de longas com uma trama romântica chamada "Happy Hour" (2018).

"Niteroiense de origem, vizinho da faculdade de cinema da UFF, onde sonhava estudar até que Collor nos atravessou e fez este sonho parecer impossível. Adiei o cinema por alguns anos até que não aguentei mais. Estou com 50 anos", diz o cineasta, que, na entrevista a seguir, explica a recriação do Rio da década de 1990 no que promete ser um dos longas nacionais mais procurados de 2023.

Qual é a recordação mais essencial do Rio dos anos 1990 que você recria em "Nosso Sonho"?

Eduardo Albergaria: Penso que a recordação mais essencial do Rio dos anos 1990 que buscamos recriar foi o sentimento de que mesmo vivendo em um Rio de Janeiro de fraturas, contradições e violências, pairava no ar uma esperança de que podíamos ser melhores, de que tínhamos um futuro pela frente e de que algo nos unia, mais do que separava. Um sentimento e uma esperança que, à luz da realidade do Rio e do Brasil — todos lembramos como os anos 1990 foram difíceis política, econômica e socialmente — podem parecer um tanto ingênuos. De lá para cá, a História nos provou várias vezes que eram mesmo. Mas essa ingenuidade também é criadora, fértil, potente.

Em que ponto essa recriação mexe com memórias afetivas suas da cidade?

O Fernando Velasco, querido amigo roteirista, foi quem teve a iluminada ideia de que deveríamos fazer este filme. Ele diz sempre que, quando toca Claudinho e Buchecha, a energia muda na hora, e para melhor. "Nosso Sonho", "Conquista", "Só Love"... É uma trilha sonora que convida à alegria, não como escape, mas, como resistência. Quando Claudinho e Buchecha extrapolaram os bailes e o rádio, chegando à TV aberta brasileira, grandes barreiras foram quebradas: a periferia do Rio ganhou visibilidade nacional. Eu, que cresci em Niterói, passei a cantar um sonho comum com quem vivia na Fazenda, na Chumbada, no Coi. Com quem vivia em localidades como Quitumbo, Guaporé, Jacaré... Na Cidade de Deus, Borel e Marechal, Vigário Geral, Rocinha e Vidigal. Todos esses lugares e muitos outros se viam cantando o mesmo sonho alegre, vital. Essa vitalidade periférica é, sempre foi, e acho que sempre vai ser, o que o Rio tem de mais potente. Nos anos noventa, Claudinho e Buchecha, dois jovens artistas periféricos, levaram essa potência para todo o Brasil e fora dele.

Que aspectos da saga de superação de Claudinho e Buchecha mais te mobilizaram?

Claudinho e Buchecha são exemplos de superação num país que insiste em negar cidadania a tanta gente, em especial a jovens negros e periféricos. Nesse Brasil a arte é um instrumento fundamental de resistência, um lugar de construção de cidadania. Por isso, essa história de sucesso é inspiradora, tem que ser celebrada, revivida, como está sendo agora com o filme. Mas também é verdade que poucos alcançam o sucesso que muitos desejam. Por isso "Nosso Sonho" conta uma história que, sendo especificamente a de Claudinho e Buchecha, está estruturada sobre temas universais. É um filme sobre personagens icônicos da música brasileira e sua origem periférica, com dezenas de atores e centenas de figurantes negros, centrado em uma música tipicamente negra, o funk. É um filme no qual o corpo negro e a cultura negra têm o protagonismo que lhes são estruturalmente recusados há tantos séculos. Mas também é um filme sobre acaso e destino, vida e morte, luto e talento, dança e choro, tragédia e redenção.

De que maneira a sua experiência como produtor em relação a documentários influi no seu olhar sobre o real retratado em "Nosso Sonho"?

Minha experiência como produtor, diretor e sobretudo espectador de documentários para o cinema me trouxe curiosidade e desconfiança não sobre a realidade dos eventos em si, mas sobre sua interpretação. Qual o sentido das coisas? Não o sentido reivindicado pelo senso comum, que serve principalmente para gerar conforto, isso não me interessa nada. Quero crer que o rigor que os bons documentários exigem tornou meu olhar sobre as coisas menos definitivo, com mais lacunas e dúvidas, menos certezas, sem, todavia, abrir mão do desejo. Tenho para mim que nosso filme "Nosso Sonho" ultrapassa o real em direção ao sonhar, ao imaginário: o poético intensifica o empírico. É certo que a ficção acena ao documentário: temos, para citar um só exemplo, imagens de arquivo que são verdadeiros tesouros.