Montagem espectral
Parceiro de Kleber Mendonça Filho na criação de 'Retratos Fantasmas', o montador Matheus Farias fala sobre a imersão no Recife de outrora garimpado em forma de fotos e filmes
Laureado com o troféu Redentor de Melhor Montagem do Festival do Rio em 2022 pelo thriller "Propriedade", Matheus Farias é um artesão de verve autoral na costura de imagens com as mais descolonizadas e provocativas miradas sobre o Brasil. Montou o trailer de "Marighella" e de "Bacurau" e editou o tocante "Seguindo Todos os Protocolos". Como cineasta, assina curtas como "Caranguejo Rei" e "Inabitável", em parceria com Enock Carvalho.
Todo o seu percurso nas artes demarca uma calorosa relação de respeito pelas informações e pelos alumbramentos que um só plano pode lhe oferecer. Foi com esse respeito que ele passou em revista o material bruto trazido por Karina Nobre e Cleodon Pedro Coelho, dupla responsável pela pesquisa de "Retratos Fantasmas".
É Matheus quem assina a edição do novo longa-metragem do diretor de "O Som ao Redor" (2012), Kleber Mendonça Filho, que promove uma cartografia afetiva do Recife - como metonímia celebrativa da tradição cinéfila deste continental país - a partir de fotografias e arquivos audiovisuais de salas de exibição. Na entrevista a seguir, Farias explica como moldou o documentário de coda ficcional e alma ensaística que foi aplaudido no Festival de Cannes.
Qual (e como) é o método de montagem de Kleber Mendonça Filho e o quanto de liberdade ele te dá para a proposição de ideias, de soluções visuais?
Matheus Farias: Kleber é um grande amante e entusiasta do processo de montagem e profundo conhecedor do material que filma, mesmo que essas filmagens tenham sido há mais de 30 anos. Eu sou do tipo que gosto de passar um tempo sozinho com o material, assistir, decupar e montar sequências por conta própria. No caso do "Retratos Fantasmas", eu me sentia mais à vontade para fazer esse processo sempre do lado dele. Uma imagem de Seu Alexandre descendo as escadas do Art Palácio ganhava outra importância quando Kleber adicionava o contexto. Um filme como esse, sem roteiro e totalmente descoberto na ilha de edição, pedia da gente muita atenção para o material que íamos descobrindo pouco a pouco. Também tem algo que eu sempre me identifiquei no cinema de Kleber, que é uma dedicação muito cuidadosa na criação do clima e ritmo, e acho que "Retratos" vai pelo mesmo caminho. Essas particularidades exigiam da gente muita disciplina no trabalho, mas, ao mesmo tempo, Kleber sempre foi muito atento às minhas sugestões e todo o processo foi de intensa troca e colaboração. Foi muito bom.
Como você avalia a potência histórica e estética do material fotográfico e audiovisual que te chegou dos pesquisadores e o quanto desse material ficou de fora do corte final?
É muito interessante redescobrir a cidade em que você nasceu e viveu através de novos registros e pontos de vista que você nunca foi apresentado antes. Por muitas vezes, eu me surpreendi com o que Kleber trazia pra montagem. Fotos e vídeos do seu acervo pessoal e da pesquisa incrível de Cleodon e Karina. Lembro do dia que Kleber me mostrou a foto do dirigível sobrevoando o Recife com a suástica nazista estampada e quase caí da cadeira. Ou do dia que fui apresentado a um álbum de família com registros da grande cheia do Recife nos anos 1970, um material incrível que a gente entendeu que não cabia no filme, porque a história precisava andar por outros caminhos. Talvez por isso tenha sido importante, entre idas e vindas, dedicar quase cinco anos de montagem para esse filme. O tempo faz a gente entender de maneira muito tranquila o que é bom para o filme e o que não é. Não considero que deixamos muita coisa de fora, mas com certeza nada do que ficou de fora era ruim.
Qual é a sua relação pessoal com as salas de cinema e qual foi o seu circuito de formação? O quanto a imersão nesse projeto narrativo do Kleber mudou a sua percepção desses espaços?
Eu nasci em 1990, o ano que Kleber conheceu Seu Alexandre e os cinemas do centro do Recife já estavam nos últimos anos de funcionamento. Das salas que aparecem no filme, tive apenas uma oportunidade de ir ao Veneza e várias vezes ao São Luiz, meu cinema preferido no mundo. Não tive tempo de viver o movimento dos cinemas do centro, mas meus pais eram donos de algumas locadoras de vídeo em Olinda, e eu trabalhava nelas quando era adolescente. Mais tarde, foi o cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no bairro do Derby, que Kleber também programou por muitos anos, que formou muito do meu olhar cinéfilo. Minha relação com o centro não passa pelos cinemas, mas sim pelas idas constantes com minha mãe quando criança. Tenho a lembrança de que, na hora de voltar pra casa, a parada de ônibus ficava de frente a um prédio antigo, com um letreiro do Cinema AIP, que já estava fechado naquela época. Aquilo me fascinava de certa forma. Há uma imagem rápida de uma placa desse cinema no filme, inclusive.