O cineasta do incêndio

Grife autoral de maior ascensão da Alemanha hoje, Christian Petzold integra o júri de San Sebastián, onde exibe, em mostra paralela, o aclamado 'Afire'

Por Rodrigo Fonseca (Especial para o Correio da Manhã)

Um aspirante a escritor (Thomas Schubert) se apaixona por uma mulher misteriosa (Paula Beer) em 'Afire'

 

Em respeito aos movimentos grevistas de atores e roteiristas em Hollywood, o Festival de San Sebastián - que abre sua edição nº 71 nesta sexta-feira com o desenho animado "The Boy and the Heron", de Hayao Miyazaki - optou por celebridades autorais vindas da Ásia e da Europa para compor seu júri deste ano, presidido pela diretora francesa Claire Denis, abrindo espaço para um pilar do cinema alemão: Christian Petzold.

O realizador nasceu há 63 anos na cidade de Hilden e iniciou em 1988 uma das carreiras mais sólidas de sua pátria entre realizadores que viraram grife. "Undine" (laureado com Prêmio da Crítica na Berlinale de 2020) e "Jericó" (indicado ao Leão de Ouro em 2008) consolidaram o prestígio que faz dele jurado no evento espanhol, na competição oficial pela Concha de Ouro. Noutra latitude, na mostra paralela Perlak, ele estará em concurso pelo prêmio de júri popular com o encantador "Afire" ("Roter Himmel"), que lhe rendeu o Grande Prêmio do Júri na Berlinale, em fevereiro.

"O afeto nos dá uma identidade de pertencimento", disse Petzold ao Correio da Manhã num papo via telefone, durante a produção de "Afire", que ganhou a láurea de Melhor Filme no Festival de Palic, na Sérvia. "Discutir identidade, a partir do cinema, é um processo antigo, que eu vejo até em Hitchcock. A Alemanha é um país assolado por uma culpa histórica que nos é imputada pelo que se passou durante o nazismo. Mas durante os bombardeios que se seguiram ao fim da II Guerra, em 1945, destruíram não só nossos prédios: acabaram com a nossa cultura, com a nossa moral e com a nossa ética. Acabaram com a nossa sensação de pertencimento. Eu faço parte de uma geração de diretores que busca as histórias que construíram essa grande História em que nos rodeamos de fantasmas. Por isso, nos meus filmes, há personagens ausentes, pessoas que desaparecem, mas deixam seu espectro".

Embalado pelo hit "In My Mind", do grupo vienense Wallners, o novo longa de Petzold já tem casa no Brasil: a Imovision. A distribuidora de Jean Thomas Bernardini foi responsável por trazer ao Brasil os cults anteriores desse artesão autoral germânico. Alguns deles foram lançados na grade da plataforma digital da distribuidora, o Reserva Imovision - e seguem por lá: "Bárbara" (2012), "Phoenix" (2014), "Yella" (2007), "A Segurança Interna" (2000) e o já citado "Jericó". São longas que ilustram sua relação de intertextualidade com a literatura, que se depura a cada novo título.

"Meu esforço é tirar a História de uma inércia arquetípica, é proteger os personagens do lugar comum, é fomentar uma nova perspectiva para a imagem,", disse Petzold, em Berlim.

Três anos após a consagração de "Undine", o realizador extrai mais uma atuação magnífica de sua habitual parceira, Paula Beer, tendo dado à disputa pelo Urso de Ouro de 2023 seu roteiro mais engenhoso, numa ode à prosa literária. A atriz é a misteriosa hóspede de uma casa no litoral, numa fase alta de calor, onde um aspirante a escritor, Leon (Thomas Schubert), anseia por uma avaliação de seu editor. Mas há incêndios ao redor, na mata, acossando os moradores e visitantes. Haverá um incêndio dentro dele também, mexendo com sua incapacidade de amar e sua falta de empatia.

"Num universo repleto de narrativas de pessoas que precisam se esconder e se reinventar, construído pelo cinema ao longo de décadas, o amor aparece sempre como um norte para os personagens", explica Petzold, que vai dar uma palestra ao público de San Sebastián sobre sua estética. "Percebo o mundo à minha volta, e sua sensibilidade, pelos ruídos que ele produz. Quando um cineasta procura locações onde filmar, ele, de costume, preocupa-se com o visual e busca imagens de referência, confiando ao olhar o desenho de sua narrativa. Não por acaso, realizadores fazem esse processo acompanhados de um diretor de fotografia, para mapear as pistas visuais do que planeja contar. No meu caso, a engenharia de som é essencial para que eu pense um filme, tanto quanto a referência visual. Por isso, quando encontro um lugar, eu fecho os olhos e tento ouvir o que esse espaço tem. Preciso ouvir o que esse lugar expressa, para que ele me conte sua história".

Ao lado de Petzold, sob a gerência de Claire Denis, estarão no júri de San Sebastián a atriz chinesa Fan Bingbing; a produtora e diretora colombiana Cristina Gallego; a também francesa Brigitte Lacombe, fotógrafa; o produtor húngaro Robert Lantos; e a estrela espanhola Vicky Luengo. Essa plêiade de artistas tem 16 longas-metragens para avaliar. Estão em concurso: "All Dirt Roads Taste of Salt", de Raven Jackson (EUA); "A Journey in Spring", de Tzu-Hui Peng e Ping-Wen Wang (Taiwan); "Un amor", de Isabel Coixet (Espanha); "Ex-Husbands", de Noah Pritzker (EUA); "Fingernails", de Christos Nikou (EUA); "Great Absence", de Kei Chika-Ura (Japão), "Kalak", de Isabella Eklöf (Dinamarca); "MMXX", de Cristi Puiu (Romênia); "Puan", de María Alché e Benjamín Naishtat (Argentina); "La Práctica", de Martín Rejtman (Argentina), "L'Ile Rouge", de Robin Campillo (França); "The Royal Green", de Kitty Green (Austrália); "O Corno", de Jaione Camborda (Espanha/ Portugal); "Un Silence", de Joachim Lafosse (Bélgica); "Le Successeur", de Xavier Legrand (França); e "El Sueño de la Sultana", de Isabel Herguera (Espanha). O Brasil não tem protagonismo na caça à Concha, participando apenas como coprodutor de alguns concorrentes, mas terá dois títulos na mostra competitiva Horizontes Latinos: "Pedágio", de Carolina Markowicz, e "Estranho Caminho", de Guto Parente.