Incrustrado no invejável cardápio da reta final da Mostra de São Paulo, iniciada no dia 19, com encerramento agendado para o dia 1°, um longa-metragem francês - com projeção nesta sexta-feira (27), às 18h, no Instituto Moreira Salles - se candidata a virar um ímã de lágrimas: "Bom Dia à Linguagem" ("Bonjour La Langue").
Projetado em agosto no Festival de Locarno, na Suíça, o filme calou fundo no coração europeu não apenas pela beleza de seus diálogos, ao abordar a finitude, mas também por representar o canto do cisne de um realizador que sempre desafiou os códigos da autoralidade nas telas: Paul Vecchiali (1930-2023). Morreu em janeiro, aos 92 anos, deixando em seu legado lírico pérolas como "No Alto Das Escadas" (1983).
Seu trabalho memorável na direção foi contemplado, no Brasil, com uma retrospectiva, em 2017, na própria maratona paulistana que acolhe seu derradeiro longa para mais uma exibição na segunda (dia 30), às 22h, no Kinoplex Itaim 2.
Era praxe de Vecchiali dirigir, editar e produzir curtas e longas sempre centrados na fratura dos afetos. Em sua passagem por terras brasileiras, há seis anos, ele desfilava pela Av. Paulista usando um foulard da Hermès em seu pescoço. Trouxe na mala, à época, joias como "Réquiem Para Uma Mulher" (1979).
"O cinema se acostumou com um princípio muito cômodo de compreensão do que é ser um autor nas telas, que insiste na tese da repetição de sintomas autorais, de marcas. Discordo disso, pois acredito que uma voz autoral pode ser medida por uma só sequência. Se, num conjunto rápido de cenas, um cineasta for capaz de expressar sua inquietude frente à vida e abrir suas entranhas, sua assinatura estética mais particular estará assegurada. Autor é quem fabrica uma imagem - por vezes, uma só imagem basta - capaz de se candidatar a uma metonímia de nossa experiência sensível", afirmou Vecchiali.
"Bom dia à Linguagem" traz o realizador também diante das câmeras, num enredo centrado na reciclagem dos sentimentos. Na trama, um homem alquebrado por angústias de seu passado, Jean-Luc (Pascal Cervo), toma uma decisão, quase por impulso, que poderá mudar sua vida: quando seu trem faz uma parada na estação Draguignan, ele resolve desembarcar e fazer uma visita ao pai (o próprio Vecchiali), que não vê há mais de seis anos.
"Acredito que cada plano rodado com paixão e inteligência estimula a gênese de outro, numa sequência em cadeia, de construção de um discurso livre", diz Vecchiali, que rodou cults como "Mulheres, Mulheres" (1974) sem passar pelo núcleo de vozes criativas da Nouvelle Vague, o movimento moderno do cinema francês do qual fizeram parte Agnès Varda, François Truffaut, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard e outros mestres.
Foram exibidos 14 filmes de Vecchiali na Mostra de 2017, incluindo "Os 7 Desertores", cujo roteiro arrancou elogios de críticos nas mais variadas línguas. Entre seus trabalhos de maior prestígio, destaca-se "Uma Vez Mais", um drama LGBTQIAP indicado ao Leão de Ouro em 1998. A trama ficou famosa na Europa por seu pioneirismo em abordar a Aids.
"O cinema em que acredito depende essencialmente da minha presença na ilha de edição, no manuseio dos fotogramas, manipulando cada detalhe da lapidação de minhas ideias e de meus sentimentos como se eu esculpisse, no tempo da imagem, o tempo da vida", disse Vecchiali. "A entrada no processo de edição emancipava meu olhar de vicissitudes que vinham dos sets".
Falando em marcos do cinema francês... a Mostra de SP promete mais duas sessões do longa que virou sensação em Paris sob o endosso da conquista da Palma de Ouro de 2023: "Anatomia de uma Queda" ("Anatomie d'Une Chute"), de Justine Triet. Tem projeção dele na terça, às 19h10, no Espaço Itaú Augusta 1, e no dia 1°, às 20h45, no Espaço Itaú Bourbon Pompéia. Na trama, uma escritora (Sandra Hüller) tem sua vida devassada nos tribunais sob a acusação de ter assassinado o marido.
