Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Paraty, a Hollywood do desbunde

'Como Era Gostoso o Meu Francês' foi rodado em Paraty | Foto: Divulgação

 

Localizada a cerca de quatro horas do Rio, pelas BRs 101 e 116, Paraty fica longe de São Paulo mais ou menos o mesmo tempo (segundo sites de orientação geográfica), sendo que, neste fim de semana, as duas cidades estão mobilizando suas populações - e visitantes - com festivais de cinema. Sampa tem a Mostra Internacional de São Paulo, em sua edição de n° 47, que vai até o dia 1°, e, até o dia 29, Paraty será alumbrada, em seu Centro Histórico, com uma seleção de títulos selecionadas pelo realizador Luiz Carlos Lacerda, o Bigode (do premiado "For All - O Trampolim da Vitória").

Mas há uma interseção histórica curiosa. Na próxima terça, dia 31, às 16h10, a sala 2 do Kinoplex Itaim, em terras paulistas, exibe o elegante documentário "Nelson Pereira dos Santos - Vida de Cinema", de Aída Marques e Ivelise Ferreira, centrado nas peripécias criativas do realizador de "Vidas Secas" (1963). Entre as imagens que integram esse ensaio sobre a saudade do diretor e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), encontra-se uma referência ao período no qual ele transformou Paraty num polo audiovisual, na década de 1970.

De lá saíram pérolas como "Azyllo Muito Louco" (indicado à Palma de Ouro de Cannes em 1970), que o evento paratiense exibe neste sábado (28), às 19h.

"Além da importância que a gente já sabe sobre a obra de Nelson Pereira dos Santos, com seus filmes narrativos, de tinturas neorrealistas, a filmografia dele nos surpreende por filmes com uma narrativa completamente diferente nessa safra chamada 'Fase de Parati' ou 'Fase do autoexílio'", diz Aída. "Nelson chamou essa fase de 'autoexílio' porque era muito difícil chegar em Parati, naquela época. Tinha que pegar barco até Mangaratiba. Era um lugar completamente isolado e essa movimentação aconteceu justamente na época dura da ditadura militar. A gente encontra aí um novo Nelson Pereira, que nos deixa bastante curiosos e surpresos, porque ele abandona toda a sua trajetória de filme narrativo, seja com tinturas neorrealistas, como a gente vê em 'Rio 40 graus', seja com uma decupagem clássica, bem rigorosa, como a gente encontra no 'Boca de Ouro'. A gente aí vai encontrar na fase de Paraty uma narrativa muito mais livre, com uma continuidade solta, com novos significados e com também um significado muito mais metafórico do que um significado direto".

Outros mestres filmaram lá, como aponta a seleção arquitetada por Bigode para a Mostra de Cinema de Paraty: nesta sexta-feira (27), às 17h, será exibido o cult "Brasil, Ano 2000", de Walter Lima Júnior, e, às 19h, tem "A Bela Palomera", de Ruy Guerra. Às 21h, rola "O Princípio do Prazer", do próprio Bigode, que foi assistente de direção de Nelson e atuou em "Azyllo Muito Louco".

"Paraty significou o que classifiquei de 'nosso doce exílio'. A época era de uma repressão violenta e, pelo isolamento daquela bela cidade, que não tinha estrada nem nada no fim dos anos 1960, a gente pôde ficar lá fazendo filmes. Entre um filme e outro, a gente morava lá", diz Bigode. "Quando acabou a filmagem de 'Como Era Gostoso o Meu Francês', Nelson me entregou umas latas que sobraram e me disse para eu ir fazer o meu primeiro longa como realizador, depois de um trabalho como assistente dele. A Leila Diniz, que trabalhou lá conosco, fez o 'Mãos Vazias', o meu filme de estreia lá".

Para o domingo, Bigode selecionou os curtas "O Sereno Desespero", "O Acendedor de Lampiões", "Paraty Mistérios", para uma sessão às 17h. Na sequência, às 19h, passa "Mãos Vazias".

"Paraty tinha uma atmosfera de liberdade incrível, como se a gente não tivesse na ditadura e teve a adesão da cidade inteira, a população", conta Bigode. "Até a autoridade militar, que era o Capitão Frutuoso, que ficou muito amigo de Leila, era uma pessoa que nos dava todo o apoio. Isso ocorreu na era do desbunde, onde tudo era uma experimentação, o que possibilitou e sedimentou um caminho novo de fazer cinema na minha vida. Foi uma forma que o Nelson me passou de fazer um cinema de resistência. A gente não tinha dinheiro, não tinha quase nada, então era na base do 'vamos trabalhar para fazer filme, mesmo sem dinheiro, sem salário, sem nada'. Era uma forma de a gente viver a possibilidade de criar artisticamente de forma livre. Nelson foi uma figura fundamental. Com ele eu aprendi que 'só não filma quem não quer'. Isso passou a ser uma espécie de lema na minha vida".

 

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