Numa tarde quente deste começo de primavera, o cãozinho estava ansioso para passear, mas teve que esperar o "corta" do diretor Mauricio Eça para sair do edifício Dorinnha, que dá frente para a praça Dom Orione, no Bixiga (zona central de São Paulo). Bem na altura do portão do prédio, uma cena aparentemente corriqueira interrompia a calmaria habitual da região.
Na calçada, a jovem que passava era abordada por um rapaz com calças largas, camiseta curta por cima da de mangas longas e com um par de patins pousado no ombro. Ele oferece a ela um trabalho: fazer fotos para um catálogo. Ela diz que não tem experiência - ele diz que não precisa. Apertada de grana, ela fica tentada ao saber que receberia R$ 1.500.
Não fossem as dezenas de pessoas acompanhando com atenção e a vasta quantidade de equipamentos ao redor, ninguém repararia que ali estava ocorrendo uma gravação. No caso, a do filme "Maníaco do Parque", que está sendo produzido para a Amazon Prime Video e conta a história do motoboy Francisco de Assis Pereira, cujos crimes ganharam manchetes de jornais de todo o país em 1998.
Seu modus operandi era justamente se passar por caça-talentos, oferecendo trabalhos de modelo para convencer as vítimas a irem com ele até o Parque do Estado (na zona sul da capital paulista) com a desculpa de fazer uma sessão de fotos em meio à natureza. Chegando lá, elas eram atacadas, estupradas, mortas e tinham os corpos escondidos no meio da mata.
Apesar de constar em todas as listas de crimes mais lembrados (e midiáticos) do Brasil, o ator Silvero Pereira, escolhido para dar vida ao personagem, conta que não acompanhou o caso com tanto interesse na época. "Estava saindo do interior do Ceará para a capital pra fazer faculdade, me tornar profissional em arte".
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Amante do gênero true crime, porém, ele não teve problema em se debruçar sobre o amplo material disponibilizado pela produção. "Tive acesso a longas entrevistas do Francisco, então, basicamente, a construção veio de ouvi-lo e construir essa mimese", conta o ator, que preferiu não conversar pessoalmente com o retratado, que segue preso na penitenciária Orlando Brando Filinto, em Iaras (SP).
"Não fiz questão de conhecê-lo, acho que não seria saudável", afirma. "Além disso, não conhecer o Francisco pessoalmente me dá a possibilidade de, enquanto artista, ter o meu momento ficcional também", avalia. "O roteiro não é 100% realista, ele tem personagens ficcionais."
Ele se refere a personagens que foram criadas para ajudar a narrativa, como a jornalista investigativa Elena (Giovanna Grigio), que no filme se debruça sobre o caso. "É muito interessante perceber que a Giovanna é a grande protagonista, e eu sou o antagonista da história. Acho que o objetivo aqui é dar voz para as mulheres."
Esse, aliás, foi um dos motivos de ter aceitado o convite para o filme. Conhecido por papéis que põem em xeque as definições binárias de gênero, Silvero diz acreditar que o filme não o tira do caminho que tentou trilhar na carreira. "De certa forma, ele me leva no mesmo lugar de todos os projetos, do que eu acredito enquanto arte, transformação, movimento, questionamento e provocação social", afirma.
Ele também destaca o fato de ser seu primeiro protagonista no cinema, além da possibilidade de ser enxergado de outra forma no mercado. "É a imagem do Silvero tirado desse lugar do LGBT, do militante. Então, me dá essa possibilidade de fazer o que a gente gosta no nosso ofício, que é de se transformar, ser diverso".
A composição da imagem inclui ainda uma caracterização que toma até duas horas por dia de filmagem - para ganhar as sardas características, entre outros aspectos físicos para aproximá-lo do Francisco da vida real. Qualquer desconforto nesse processo, no entanto, fica fácil diante do desgaste gerado pelas cenas em que precisa executar as violências de seu personagem. "A gente bota uma carga emocional muito forte na cena", afirma Silvero, pontuando que as cenas de violência foram realizadas em conjunto com as coordenadoras de movimento e de intimidade do filme, na tentativa de que se tornassem menos pesadas de realizar. Além disso, há uma psicóloga à disposição e foi criada uma rotina para os atores se distanciarem dos personagens depois de as cenas mais violentas serem rodadas.
Profissionalismo
Para Bruna Mascarenhas, que interpreta a personagem Cristina (que junta características de mais de uma das vítimas de Francisco), as cenas foram gravadas com muito profissionalismo e a parceria com Silvero foi fundamental. "Não vou dar spoiler, mas tem uma cena que foi bem pesada de fazer", conta. "Todo mundo ficou em silêncio e, depois que cortou, continuei concentrada. O Silvero me olhou, veio na minha direção, e a gente só se abraçou e chorou um pouco. Quando cheguei em casa, tomei uma hora de banho ouvindo pagode dos anos 90. E é isso, é nosso trabalho se envolver, estar 100% na emoção, mas também sair 100% dela."
A atriz, que era criança quando os crimes ocorreram, conta que soube na adolescência da repercussão do caso. Por isso mesmo, a atriz diz não conseguir ser favorável à soltura de Francisco, programada para ocorrer em 2028 - apesar de ter sido condenado a cerca de 270 anos de prisão, a legislação brasileira não permite que ninguém fique preso por mais de 30 anos. "Isso é uma coisa que me deixa preocupada mesmo. Sou super a favor da ressocialização, né? Se pessoa pagou, ela tem o direito de sair, tem o direito de reconstruir a sua vida. Mas existem casos e casos. E, nesse caso, acho que tem que ser pensado com muito cuidado, porque a gente não quer que isso se repita mais uma vez", argumenta.