Culto à moda espanhola
Alvo de debates em San Sebastián, 'Pacifiction' estreia na grade da MUBI
Pouco depois de ter conquistado o Urso de Ouro de 2022 com "Alcarràs" e de brilhar nas plataformas digitais com séries dos mais variados gêneros, o cinema espanhol emplacou uma coprodução com a França que, há um ano, não sai do radar dos grandes festivais e da crítica: "Pacifiction". Maior êxito da carreira do catalão Albert Serra, o longa acaba de entrar para a grade da MUBI no Brasil. No exterior, foi alvo de debates (e de elogios) na passagem de seu realizador pelo Festival de San Sebastián, onde ele falou sobre sua relação com o tempo, ao contemplar dilemas existenciais.
"Tenho formas de pensar a linguagem que passam por uma herança de meu país nas telas. Sou, sim, um cineasta espanhol, pela minha gênese pessoal, mas o meu cinema não está preso a paradigmas nacionais, nascendo de uma troca com a França, no desejo de expressar o mundo a partir de uma inquietação formal que não se defina meramente pela palavra, ainda que esta, quando aparece em cena, tem uma relevância, um sentido, um efeito", disse Serra ao Correio da Manhã em solo espanhol.
Empatia é um termo sempre usado na diagonal, nas raias da opacidade, nas trocas formais, oficiais e (vez ou outra) afetivas retratadas em "Pacifiction", um exercício autoral visualmente virtuoso que foi eleito "O Melhor Filme de 2022" nas votações da "Cahiers du Cinéma", revista encarada como bíblia audiovisual desde 1951. Essa estampa de qualidade do mais respeitado periódico do mundo transformou o que era uma potente dramaturgia sobre a ressaca política de um mundo de ideologias afogadas num acontecimento, aquilo que revistas como a "New Yorker" chama de talk of the town, "O" assunto da cidade. Muitas vezes essa bênção francesa da "Cahiers" erra, sacralizando bezerros de ouro. Em outras (as enquetes em que figuraram Bertrand Mandico, Maren Ade, os Irmãos Safdie, Patricia Mazuy, Ladj Ly e Kleber Mendonça Filho) acertos foram reconhecidos e atestados pela História, como se faz agora com o catalão Albert Serra, o responsável por uma "pacificação" nunca plena dos legados do colonialismo.
"Este é um mundo onde os códigos de valor com que devíamos respeitar o próximo naufragaram", diz o cineasta. "Não uso o roteiro com os atores. Eu converso com eles, cena a cena, para tentar que eles se guiem pelo sentimento que cada sequência proposta sugere".
Desde o obrigatório "A Morte de Luís XIV" (2016), com Jean-Pierre Léaud, Serra goza de um prestígio autoral singular na Europa, como porta-voz de almas alquebradas pela percepção de que o tempo histórico que validava suas potências beira o ocaso. Artur Tort, habitual diretor de fotografia de seus longas, jamais olha para uma corte, um ambiente palaciano ou pro mix de resorts e inferninhos retratado em "Pacification" em busca de lugares comuns de luxo e de suntuosidade. Existem várias moléstias na dramaturgia de Serra e o tédio é uma delas, quase sempre acompanhado de um certo esnobismo maquinal, ou seja, uma arrogância em relação aos processos de interação social e de trocas financeiras. Assim sendo, lirismo é algo que não lhe cabe, ainda que exista algo de lúdico no verdume das florestas da Polinésia Francesa onde a trama se passa. Mas a preferência de Serra é pelo que existe (ora) de arenoso e (ora) de lamacento na alma do personagem central daquele Éden em falência: um misantropo alheio à perseverança humana chamado De Roller, Alto Comissário da República no Taiti.
Para viver a figura enigmática, que é galã e monstro no mesmo corpo, operando como Jekyll pro neoliberalismo e Mr. Hyde para o discurso ecológico, Serra convocou um ator em estado de graça: Benoît Magiel. Premiado em Cannes, em 2001, por "A Professora de Piano", em duo erótico com Isabelle Huppert, Magimel transforma De Roller num Exu que flana por diferentes mundos (o de governantes poderosos, o de turistas milionários e o bas-fond do comércio sexual) buscando equilíbrio. Mas a ameaça de um conflito atômico, somada à fagulha de um benquerer que parecia impossível, vai tirá-lo do ponto morto. Seu despertar revela, com o olhar decadentista de Serra, que o bárbaro é sempre aquele que se civilizou. É um roteiro deslumbrante, defendido por um ator no apogeu de seu vigor cênico.
Entre os destaques de San Sebastián de 2023, "May December", de Todd Haynes, com Julianne Moore e Natalie Portman, já está assegurado para a Netflix, para estrear no fim do ano. Também visto no evento espanhol, o thriller "O Assassino", de David Fincher, vai estar no streamings em novembro, trazendo o inglês Michael Fassbender no papel de um matador em crise.