CRÍTICA / CINEMA / ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES | O ódio será nossa herança
Celebrizado nas veredas da violência por meio de tramas de máfia, centradas na sociologia de uma América suburbana, Martin Scorsese envereda por códigos do western não pelas malhas mais populares do gênero (duelos, cavalgadas, desbravamento do Oeste), mas por um veio antropológico, no mesmerizante "Assassinos da Lua das Flores". Superprodução de US$ 200 milhões, o novo longa-metragem do realizador de "Os Bons Companheiros" (1990) é uma adaptação ousadíssima, de três horas e 26 minutos, do livro de não-ficção "Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI", do jornalista americano David Grann.
É um tratado histórico contra o racismo americano, que adotou os povos originários de seu território como objeto de intolerância, entre os quais a população indígena Osage. Dois musos da obra do diretor unem seus talentos em cena: Leonardo DiCaprio e Robert De Niro.
Ganhador do Oscar por "A Baleia", Brendan Fraser tem uma participação luminosa no terço final de "Assassinos da Lua das Flores", um projeto da AppleTV que teve uma exibição em tela grande em maio, no Festival de Cannes, e chega agora ao circuito exibidor. A montagem de Thelma Schoonmaker (sempre exuberante em sua esgrima com a mesa de edição) equilibra tensão, conspirações políticas, melodrama e confronto de culturas. É nesse último aspecto que Lily Rose Mary Gladstone - atriz descendente dos indígenas Nimíipuu e Pikunis - se destaca em cena, e se candidata ao Oscar.
Numa mistura de melancolia e resiliência, a personagem dela ilumina a trama fotografada por Rodrigo Prieto. Proustiano, Scorsese busca um tempo perdido quando os Osage ficam ricos com a descoberta de combustível fóssil (petróleo) em suas terras, no início do século XX, logo após a I Guerra. Nos anos 1920, em Oklahoma, eles passam a ser manipulados por um senhor feudal fora de época, chamado de "Rei", o poderoso William Hale (De Niro, em magistral atuação). Precisando de alguém de confiança para garantir que nenhum Osage passe do ponto, matando-os se preciso for, Hale dá emprego de motorista (e de faz-tudo) para seu sobrinho, Ernest, vivido por um Leonardo DiCaprio maduro, com ares de Burt Lancaster.
No flerte com os indígenas que deve vigiar, eliminando alguns, Ernest se casa com uma herdeira dessa população, Mollie, papel de Gladstone. Mollie ficou rica, mas padece de diabetes, sem conseguir dar conta do mal-estar que sente. Padece também da dor diante das mortes de seus conterrâneos. O amor de Ernest é um alívio pra ela, mas será, mais adiante, um caos. É o que se passa quando ela percebe que seu companheiro está ligado a crimes de ódio. As confusões de Ernest acabam num tribunal, num julgamento em que todas as imposturas dos EUA entram no banco dos réus.