Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / FILME / MUSSUM, O FILMIS | Salas vaziasé o cacildis!

Aílton Graça tem atuação que faz jus a seu sobrenome encarnando o carismático Mussum | Foto: Desirée do Vale/Divulgação

 

Embora esteja associado historicamente ao bom humor e à leveza, a obra musical de Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994) tem um verso que contextualiza (e exorciza) a dor do viver: "Quantas noites de tristeza ele me consola/ Tenho como testemunha a minha viola/ Ai, se me faltar o samba não, sei o que será/ Sem a cadência do samba não posso ficar". Cabe um bom tanto dessa em "Mussum, o Filmis", a biografia de Antônio Carlos, que chega neste fim de semana ao circuito com uma promessa (devolver ao cinema nacional o gostinho de vender um milhão de ingressos) e muitas certezas.

Duas devem arrancar qualquer análise do primeiro longa-metragem dirigido pelo ator Silvio Guindane: a) a maturidade na fotografia de Nonato Estrela joga com um uso de cor que aquece e esfria o peito da gente, em diástole e sístole, nas perdas e nas vitórias; b) Aílton Graça tem a interpretação mais visceral de uma carreira que foi alçada aos holofotes há exatamente 20 anos, com "Carandiru", no qual vivia Majestade.

Lançado nesta quinta-feira (2), no Dia de Finados, sem temer quizila alguma, a cinebiografia do músico dos Originais do Samba, ator, Trapalhão e ícone antirracista é construída a partir de um comovente e engenhoso roteiro de Paulo Cursino, Midas do humor e raiz criativa do projeto (de recriação da vida de Antônio Carlos como ficção).

Um projeto que conta com o apoio fino do campeão de bilheteria Roberto Santucci (realizador de "Até Que a Sorte Nos Separe") no esmeril estético (como supervisor artístico) do filme, produzido por André Carreira.

É difícil não olhar para o longa e não pensar em narrativas edificantes como "Coach Carter: Treino Para a Vida" (2005), com Samuel L. Jackson, ou o inesquecível "Lean On Me" (aqui chamado "Meu Mestre, Minha Vida"), com Morgan Freeman. A centelha da superação está lá, a cada palavra esculpida por Cursino, que foi feliz na recriação das situações cômicas de Antônio Carlos na TV, tendo o genial dublador Christiano Torreão como Sargento Pincel.

Aplaudido no Festival de Gramado há duas décadas por seu desempenho em "De Passagem", Guindane voltou lá, este ano, em agosto, agora como realizador, para a primeira projeção pública do longa. Saiu do Rio Grande do Sul com sete troféus, incluindo o de Melhor Filme. Aílton que está, literalmente, em estado de graça, em cena, foi laureado lá com o prêmio de Melhor Ator.

É uma atuação devastadora, que condensa todo o pleito contra o preconceito do recorte histórico de Guindane, centrado na relação entre Mussum e a mãe, Dona Malvina. Cacau Protásio e Neusa Borges se revezam no papel, em épocas distintas da vida de Antônio Carlos. Cursino tem uma habilidade singular de unir épocas da vida de seu biografando de modo a pinçar delas o que há de melhor, tendo Yuri Marçal (iluminado) na fase do Mussum rapagão, na flor da mocidade.

Existem menções à infância, à Aeronáutica, à "Escolinha do Professor Raimundo", ao convívio com o diretor de TV Maurício Sherman (brilhantemente defendido por Paulo Mathias). Tem ainda a fase Os Trapalhões, com Gero Camilo de Renato Aragão. Apresentado ao cinema no cult "Como Nascem os Anjos" (1996), Guindane desfila por esses episódios de modo acurado, sem pesar a mão nos conflitos, apoiado na iluminação apolínea de Nonato. Antes, o ator e cineasta escreveu séries ("Acerto de Contas") e dirigiu um longa anterior pra Netflix ("Casamento à Distância"). Ele trabalhou com Santucci no passado, em "Alucinados" (2008), e acabou sendo a escolha acertada para assumir o comando da saga de Mussum, abrindo um debate contra a intolerância, pautada pelo livraço "Mussum forévis: Samba, mé e Trapalhões", de Juliano Barreto.

Acompanhamos bem no filme a fase Originais do Samba, com Antônio Carlos na voz e no reco-reco, na formação inicial do grupo, com Bide (cuíca), Chiquinho (ganzá), Lelei (tamborim), Rubão (surdo), Bigode (pandeiro) e Branca de Neve (violão). Mas a passagem com Os Trapalhões entra em cena como um filé.

Logo após a morte de Zacarias (1934-1990), Renato, Dedé e Mussum continuaram a fazer o programa até 26 de dezembro de 1993, quando o humorístico saiu do ar. Cerca de sete meses após o fim do programa, um novo baque vai abalar a alegria dos trapalhões: no dia 29 de julho de 1994, o Brasil perdia Mussum, em decorrência de problemas cardíacos. Famoso pelo vocativo "Cacildis!" e pelo jeitão malandro de sambista da Mangueira, o personagem criado por Antônio Carlos imortalizou seu criador no coração das crianças de todo o país. Ficou célebre ainda no imaginário de nossa música popular. Seus trejeitos atabalhoados e o chapeuzinho colorido ajudavam a compor um tipo inesquecível. Sem Mussum, a grife "Os Trapalhões" perdia um colorido e um batuque de alegria. O Brasil perdia. Agora, com um filme seminal, essa perda entra num processo de sublimação pela transcendência.

 

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