Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Alice Winocour e a estética do trauma

Vi muitos longas de terror para criar esse clima de assombro" Alice Winocour | Foto: Pascal Le Segretain/Divulgação

Composto por 19 longas-metragens inéditos em circuito nacional, dois clássicos com Brigitte Bardot e uma série de TV, o Festival Varilux arranca nesta quinta-feira, em cerca de 50 cidades de todo o país, incluindo o Rio de Janeiro, com filmes obrigatórios ("Anatomia de uma Queda", "Orlando, Minha Biografia Política"), entre os quais um tratado sobre a vida em trauma, pós atentados terroristas.

Essa joia se chama "Memórias de Paris" ("Revoir Paris" lá fora). Tem sessão dele amanhã (quinta), às 16h15, no Estação NET Gávea, e às 18h20, no Estação NET Botafogo. Sua diretora - premiada mundialmente por filmes centrados na resiliência feminina, como "Augustine", de 2012, e "A Jornada", de 2019 - é Alice Winocour, que transporta para seu mais recente exercício autoral horrores pessoais. Ela revive os atentados de 13 de novembro de 2015. Na data em questão, terroristas associados ao Estado Islâmico atiraram contra o público da casa de espetáculos parisiense Bataclan, em meio a um concerto de rock. Umas 90 pessoas morreram e mais uma dezena de frequentadores saíram feridos. Durante o incidente, Alice estava em casa, com seu namorado, trocando SMSs com seu irmão, que estava no local, em meio aos tiros. O horror daquela lembrança virou uma narrativa audiovisual tensa, que vem atraindo milagres de pagantes nos cinemas europeus.

A produção virou um dos títulos mais disputados do 25º Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, um fórum de estímulo à distribuição e à exibição de títulos francófonos, realizado em janeiro, na capital francesa.

No roteiro, a cineasta aborda o incidente do Bataclan a partir das angústias existencias de uma mulhe, Mia (Virginie Efira, de "Benedetta") três meses depois da violência. Ela continua traumatizada e incapaz de se lembrar dos acontecimentos daquela noite. Numa tentativa de seguir em frente, ela começa a investigar as suas memórias e a retraçar os seus passos, descobrindo segredos sobre aquele pesadelo.

Como a vida segue após uma experiência de horror?

Alice Winocour: Com arte, porém existe menos o interesse por uma expressão artística que denuncie e mais por uma forma de expressão um "segue em frente", um prosseguimento. Uma vivência pós-traumática já é pesada demais, em si, para exigir julgamentos. Preocupava-me o risco de vitimizar nunca essas pessoas que precisam se livrar de uma carga de dor. Não é que eu precise recorrer a uma ideia de "final feliz", de redenção, mas eu gosto de poder retratar a transcendência, a reconfiguração dos sentimentos.

Você fala de sobrevivência, mas o filme filtra bem excessos melodramáticos em relação à luta da personagem de Virginie. De alguma forma o melodrama te serviu de base na direção?

O terror físico, fisiológico, de David Cronenberg foi um caminho. Dialoguei com o cinema dele ao retratar a perna ferida de Thomas, o personagem de Benôit Magimel em "Memórias de Paris". Vi muitos longas de terror para criar o clima de assombro dos atentados do meu longa. Mas tenho uma conexão longa com filmes que causam medo, desde quando vi "Psicose", de Alfred Hitchcock pela primeira vez.

Que recordações você guarda da angústia daquela noite, em meio aos atentados?

A mão do meu namorado na minha. O efeito que duas mãos dadas geram, na tela e na memória, é uma sensação de pertença e de amparo. O que vemos em "Memórias de Paris" é uma pessoa perdida numa espécie de limbo, que olha sua cidade com a estranheza da falta de pertencimento, sem porto ou pouso.

Como se deu o processo com seu irmão durante os atentados?

Eu estava em casa e meu irmão estava no local dos tiros. Eu me lembro de tentar falar com ele e de, em algum momento, ter aceso uma vela em homenagem às vítimas, em respeito, na torcida para que sobrevivessem. Mas o que se passou ali não é mais tão perceptível pra mim, pois eu me lembro mais das filmagens de "Memórias de Paris" do que dos fatos. A fronteira é tênue.

O que a capital francesa, expressa pra você, depois dos atentados?

Se você mergulha na história da fotografia, vai perceber que a imagem de Paris, no ângulo das câmeras, preserva uma certa recorrência numa perspectiva de uma metrópole de bares, viva. Era importante que eu rodasse esse longa lá não apenas pela relevância do tema, mas pelo fato de ter rodado meus outros filmes em cidades diferentes. Era importante que eu filmasse no meu lugar de berço, ainda que com um olhar de estranheza.

Vai ter Varilux até o dia 22 de novembro.

 

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