A partir da conquista do prêmio de Melhor Longa-metragem do É Tudo Verdade 2023, o doído "Incompatível Com a Vida" vem sendo um dos nomes mais badalados entre os potenciais candidatos ao Oscar de documentários da Academia de Hollywood no ano que vem. A narrativa dirigida por Eliza Capai é uma experiência única, de rara coragem.
Laureada com o prêmio da Anistia Internacional da Berlinale 2019 por "Espero Tua Revolta", Eliza começou a filmar sua gravidez durante a pandemia. Tudo parecia correr bem até o diagnóstico: o bebê em seu ventre tinha uma malformação. Um aborto seria a melhor solução. A complicada jornada da realizadora resulta na interrupção de gravidez de forma legal, em Portugal - no Brasil, realizar uma interrupção de gravidez de um feto incompatível com a vida é inconstitucional. Eliza conversou com outras mulheres que, a partir do mesmo diagnóstico, criando um potente coral com diversas opiniões e vivências de luto parental.
Que dramaturgia reside num processo de gravidez e que dramaturgia você encontra na experiência da maternidade interrompida?
Eliza Capai: Vou dar respostas que falam sobre a gravidez desejada e a interrupção de uma gravidez desejada pois acho que a maternidade e a interrupção da gravidez são mundos muito vastos. Falo a partir do recorte do que vivi. O que eu aprendi muito nesse processo é que, dentro da nossa cultura, a maternidade fala muito de projeção. Como mulher, cresce-se, em geral, socialmente, aprendendo que um dia seremos mães. Então, essa é uma projeção que vem desde que a gente é pequenininha, desde que a gente recebe uma bonequinha para brincar. Exige-se, desde os dois tracinhos do teste, desde o exame positivo, uma aceleração, uma imaginação muito forte do que será esse ser que ainda são moléculas em formação, que ainda é pequenininho ali dentro. Acho que tem uma dramaturgia da expectativa, do sonho e, também, dos medos. O momento em que a gente se depara com o maior desconhecido, com a maior falta de controle, e, no caso de uma gravidez como a minha, eu acho que é um momento em que a vida expressa um resumo do que ela é. Expressa que é vida e morte, e o descontrole é completo. Nossa sociedade tem um esforço muito grande por fingir controle. A gente vai criando várias proteções para nos enganar de que a gente não tem controle sobre coisa alguma. E para mim, a experiência da minha gravidez foi um grande aprendizado sobre o que é a vida. É esse descontrole, que por um lado pode ser muito doloroso, mas por outro lado, ele é muito potente porque nos conecta mais com hoje, com o que é de verdade: o estarmos aqui.
Como se dá o exercício de construção de roteiro para consolidar essa narrativa de vivência e de escuta como dramaturgia?
Em todos os meus demais filmes eu sempre tinha a sensação de que se eu entregasse um filme que era o que ele se propunha inicialmente - aquilo que estava na sinopse de venda, por assim dizer -, eu haveria fracassado. Acho que o documentário é o ato de a gente ir descobrindo as coisas no processo. No caso de "Incompatível com a Vida", isso foi muito mais radical. Eu estava fazendo um filme, que seria uma viagem pelo Brasil perguntando 'o que é o amor' pelos interiores, pelos sertões do país. Ia perguntar sobre a maior experiência de amor e de desamor das pessoas. No momento em que a gente entende que havia financiamento para o filme, estoura a pandemia, vem o lockdown. É o momento que eu me descubro grávida. Então eu começo simplesmente a me filmar como um exercício de fotografia, pensando como eu filmaria as outras pessoas. E naquele momento eu decido que eu falaria também apenas com mulheres grávidas. Então esse filme, desde o seu início, ele mesmo foi contestando a própria história. O lockdown que, naquele momento, parecia que ia durar dois meses, durou anos. A gravidez que eu achei que seria o mote de conversar com outras mulheres, discutindo por que a gente insiste em colocar filhos naquele mundo, pareceu-se uma grande prova de amor ao futuro. Mas com ela, também se dá o reverso. Então desde o início da dramaturgia, do roteiro, a própria trama foi se invertendo.
E como o processo se desenrolou na narrativa?
Fui vivendo absolutamente presente onde eu estava e deixando uma câmera em cima de um tripé gravando alguns desses momentos, sem pensar. Eu acho que a diferença de quando a gente está gravando uma terceira pessoa e aquele momento - no qual estou me gravando - é saber que, aquele material... só eu poderia editá-lo. Poderia, inclusive, não editá-lo. E essa possibilidade foi o que me fez ter liberdade para apenas deixar a câmera ali gravando, o que me permitiu chegar muito mais perto daquela personagem, de mim, do que eu chegaria de qualquer outra pessoa.
De que maneira (consciente) sua passagem por universos como os de "Tão Longe É Aqui" e "Espero a Tua (Re)Volta" conversa com a aventura de fazer "Incompatível com a Vida"? São conexões pela via social, pela via política, pelo afeto?
Sinto que meus filmes partem do que eu não entendo, e do que tenho uma grande curiosidade por entender. O "Tão Longe É Aqui" parte de uma viagem pela África. Fazia reportagens para a TV e vivi incompreensões. A viagem foi em 2010. A discussão sobre raça da época não tem nada a ver com o que é hoje. Ainda bem que avançamos. Eu me deparei com toda a branquitude durante essa viagem. Eu me deparei com esse lugar racista que nós temos. O "Espero Tua (Re)Volta" parte de uma curiosidade muito grande de entender como aqueles estudantes, que vinham de escolas públicas sucateadas, das periferias, tinham conseguido um grau tão elaborado de luta e de consciência política. A partir do desejo de entender por camadas mais profundas, ouço pessoas que sabem as respostas às perguntas que eu não sei, e busco construir uma narrativa na edição. Eu curto muito o processo de edição enquanto tomada de sentido de criar. Quando isso chega na minha experiência pessoal, tento entender o que eu faço com essa experiência? "Incompatível com a Vida" vem como uma descoberta para eu aprender o que fazer com essa perda, com essa frustração sem tamanho que é a perda de um filho desejado. E a minha forma de fazer isso foi perguntando para pessoas que já tinham passado por aquela experiência. Esse cruzamento entre a minha história pessoal com a das outras pessoas é uma forma de elaboração desse luto.