Godard não se despreza

Cult de 1963 do semiólogo nº 1 do cinema, com Brigitte Bardot e Jack Palance, ganha as telas do Varilux, comemorando 60 anos de sua estreia

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Brigitte Bardot e Jack Palance em cena em 'O Desprezo', narrativa decalcada de romance homônimo de Alberto Moravia

Visto por 1,5 milhão de pagantes na França, seu país de origem, em sua estreia, em 1963, "O Desprezo" ("Le Mépris") carrega, há 60 anos, a fama de ser o filme "mais acessível" da obra de tom semiológico de Jean-Luc Godard (1930-2022), em parte por carregar elementos policiais em sua narrativa, decalcada do romance "Il Disprezzo", lançado em 1954 por Alberto Moravia (1907-1990). Um elenco em estado de graça (Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Giorgia Moll e o diretor Fritz Lang) asseguraram a vitalidade do longa-metragem, que ganha os holofotes do Festival Varilux no Brasil, na celebração de suas seis décadas.

Na trama, o escritor e roteirista Paul Javal (Piccoli) leva uma vida feliz com sua esposa Camille (Brigitte). O famoso produtor americano Jeremy Prokosch (Palance) o convida para trabalhar numa adaptação do poema épico "Odisseia", a ser dirigido por Fritz Lang na Cinecittà, em Roma. O casal então vai até o local e conhece a equipe de filmagem. Prokosch logo avança em direção a Camille na frente de Paul, e então conflitos estratificados ocorrem entre arte e negócios. Esta tentativa de sedução soará como a sentença de morte para o relacionamento de Paul e Camille e também para o conceito de linguagem aplicado à vida conjugal.

Houve sessão de "O Desprezo" no Festival de Cannes deste ano, em maio, na Croisette. Ao longo da projeção, muito se falou de sua produção e do desejo de seu realizador em ter Kim Novak e Frank Sinatra como protagonistas. Houve uma série de homenagens a Godard por lá. Falou-se dele também na Berlinale e em San Sebastián.

Entre os muitos documentários sobre produções audiovisuais exibidos em Cannes este ano em Cannes, o filme "Godard par Godard", da francesa Florence Platarets, virou um dos títulos mais visados por distribuidores e streamings diante da maneira celebrativa como faz da morte de seu protagonista um gesto primaveril. Era o que Godard queria ambicionava quando optou por serenar, aos 92 anos, num suicídio assistido, confessando-se cansado do excesso de informações do mundo. Mas a morte não haveria de ser o limite final para um cineasta que devotou 62 anos a desafiar todas as fronteiras de linguagem.

Além do .doc de Floence, com depoimentos em primeira pessoa, a Croisette exibiu um filme surpresa, de 20 minutos, construído por ele a partir de uma colagem de imagens de arquivo pouco antes de morrer, chamado "Drôles de Guerres". Seus colaboradores habituais, Fabrice Aragno, Nicole Brenez e Jean-Paul Battagia finalizaram o curta de 20 minutos, autoclassificado como "o trailer de um filme que jamais existirá" e definido como um ensaio sobre a overdose de signos que a internet deposita sobre nós, a cada segundo.

"Palavras não são um sinônimo de linguagem, pois linguagem é algo além, é um conjunto de procedimentos de como empregamos signos. O problema é que as pessoas articulam esses signos sem a coragem de fantasiar o que aconteceria se as convenções fossem usadas de outra maneira", disse Godard ao Festival de Cannes de 2018, pouco antes de receber uma Palma de Ouro Honorária por "Imagem e Palavra", seu derradeiro longa-metragem (em vida), que hoje pode ser alugado na Amazon Prime.

Essas palavras ditas por ele à Croisette não se enquadraram num processo convencional de entrevista, ao vivo. Ele falou com Cannes de seu escritório, na Suíça, usando Facetime, num papo em que elogiou a herança cultural de entrevistados da Rússia, de Portugal e do Brasil e lamentou o fato de todos falarem em Inglês. "Quem nasce na Itália é italiano. Quem nasce na China é chinês. Quem nasce na França é francês. Mas quem nasce nos Estados Unidos leva o gentílico de americano. A onipotência deles é tanta que eles não levam o nome do país e, sim, do continente", disse o cineasta numa coletiva de imprensa nos anos 1990.

No império do efêmero que o mundo midiático virou sob o garrote das fake news, o cineasta franco-suíço responsável por injetar poesia na semiologia, saiu de cena fazendo de sua partida um espetáculo transgressor, desafiando o Tempo, deixando como legado 118 filmes (entre curtas e longas) e mais 12 produções para a TV (entre séries e especiais).