ARTIGO | Oração para a amizade, essa santa protetora
Vi "Nosso Sonho" tardiamente, quando já era o maior sucesso de bilheteria de 2023 do cinema nacional. Vi diversos filmes em um. Não saberia hierarquizar a importância desses diversos filmes, que contam diversas histórias a partir da narrativa de uma dupla seminal para o funk. A dupla que ajudou a configurar a mais importante expressão cultural e artística do Rio de Janeiro, mais uma vez criada pelo povo preto. Cada um desses filmes - e principalmente a soma de todos eles - explica cada ingresso comprado nos cinemas, principalmente aqueles que ainda resistem nos shoppings dos subúrbios cariocas.
Quando soube que o diretor do filme era ele próprio de Niterói, cidade vizinha à São Gonçalo do longa-metragem, eu o invejei. Mas o fiz no melhor sentido da palavra, porque sempre quis narrar uma história da Olinda, a cidade em que me constituí como ser humano e como ator cultural. "Nosso Sonho" não poderia ter sido dirigido por alguém que não fosse da região. São Gonçalo é talvez a mais intrigante das cidades do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo tão longe e tão perto, ao mesmo tempo tão grande e tão pequena. "Nosso Sonho" é o filme que o cinema brasileiro devia a essa cidade.
É também um filme sobre a história de uma amizade - mas de uma amizade que me parece possível apenas na periferia do Rio de Janeiro, onde os laços de amizade, sobre aquilo que vivemos na rua imediatamente em torno de nós, são mais importantes do que os laços de família. Um exemplo do quão os laços de amizade são mais importantes está na lógica do próprio tráfico de drogas, inteligentemente evitado no filme, ainda que a ascensão do tráfico de drogas e a do baile funk tenha ocorrido na mesma quadra da história, na curva dos anos 1980 para os anos 1990. No tráfico de droga, as relações de confiança são baseadas em amizades, não em consanguinidade, como acontece nas outras máfias, inclusive a do jogo do bicho.
A própria história das famílias (e esse é também um filme sobre as famílias periféricas) nos mostra o quanto a amizade de Claudinho e Buchecha foi importante para que ambos sobrevivessem às consequências de um estado que historicamente usa todas as suas instituições para destruir a família de nossas favelas e subúrbios. Foi na amizade que Claudinho e Buchecha encontraram força e lucidez para suportar a ausência (no caso de Claudinho) e a violência do pai (no caso de Buchecha). Nesse sentido, temos uma sequência apoteoticamente emocionante, quando Buchecha entrega o CD que Claudinho pedira para que desse para sua filha, Vanessa, no aniversário dos 15 anos dela.
Essa amizade também está presente em outras duplas que ajudaram a consolidar o funk como a expressão das periferias cariocas no início da década de 1990. Não à toa temos como um dos pontos de virada do filme a apresentação de Cidinha e Doca cantando o "Rap da Felicidade". O funk transborda da favela para a mídia e daí para a cidade a partir de sucessos cantados em um dos momentos mais importantes e esperados naqueles bailes que movimentavam mais de 2 milhões de pessoas a cada fim de semana, como Júnior e Leonardo, William e Duda do Borel, Markinhos e Dollores. O próprio momento que antecede a primeira apresentação de Claudinho e Buchecha mostra o quão os laços de amizade foram importantes para que cada um daqueles moleques imberbes arrumasse força para subir nos palcos montados em todas as favelas do rio de janeiro, num momento tão decisivo para que possamos entender aquilo que Zuenir Ventura chamaria de "Cidade Partida".
Esse é também um filme sobre uma cultura da alegria, que talvez seja o mais importante ativo do Rio de Janeiro, uma cidade que apesar de tudo continua apostando na possibilidade do encontro não apenas como fonte de celebração, mas de reenergização para enfrentar os tiros de metralhadora que a juventude periférica ouve quando recorre uma oração para uma santa protetora. Essa força motriz que tem sido a alegria é o que permite que esses jovens massacrados pelo estado continuem sonhando - sim, esse é também (e acima de tudo) um filme sobre o direito ao sonho. Um povo que acredita no sonho não apenas fica bonito quando sobe ao palco, como dito em um dos momentos de pérola do roteiro. Esse sonho cria novas culturas e, ao criar novas culturas, esse povo muda um país.
*Escritor, autor de "No Coração do Comando", e diretor da Festa Literária das Periferias (Flup)