Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Selton em tempo de colheita

O Cheiro do Ralo | Foto: Divulgação


Em paralelo ao lançamento do imperdível livro "Selton Mello: Eu Me Lembro" (Ed. Jambo), a comemoração dos 40 anos de carreira do ator e cineasta mineiro que virou um dos maiores ídolos do nosso audiovisual conta com um reforço de peso via MUBI: uma retrospectiva. Com dois longas inéditos para estrear em 2024 - "Enterre Seus Mortos", de Marco Dutra, baseado na prosa de Ana Paula Maia, e "O Auto da Compadecida 2", de Flávia Lacerda e Guel Arraes -, o astro ganha uma mostra de peso na streaminguesfera.

Lá se encontram cults que marcaram a primeira década do século XXI como "O Cheiro do Ralo", de Heitor Dhalia, exibido no Festival de Sundance em 2007 e coroado, um ano antes, com o Prêmio Especial do Júri do Festival do Rio.

Tem ainda um Júlio Bressane decalcado de Machado de Assis: "A Erva do Rato", de 2008, com Alessandra Negrini ao lado de Mello numa trama de tons metafísicos. Tem até animação - e que animação! - com direito a um exemplar do filão laureado no Festival de Annecy: "Uma História de Amor e Fúria" (2002). Ali, Selton que é um super dublador, empresta a voz a um dos protagonistas.

 

Um cineasta em ascensão

O Palhaço | Foto: Divulgação

Ainda no Mubi rola de ver o bom trabalho de Seton Melo como cineasta. Tem o sucesso de bilheteria "O Palhaço", de 2011, que virou blockbuster trazendo Selton no papel de um astro circense em crise com o picadeiro.

É impossível não se contorcer de rir com a figura do delegado Modesto vivido por Moacyr Franco, laureado com o troféu de Melhor Coadjuvante no (extinto) Festival de Paulínia, em 2011. Selton saiu de lá com a láurea de Melhor Direção, merecidíssima. Foi a segunda de sua trajetória profissional por lá. Antes, ele foi agraciado lá por seu exercício personalíssimo de realização em "Feliz Natal" (2008).

É o primeiro longa do eterno Chicó como realizador: "Feliz Natal" (2008). Selton foi preciso na direção. A trama se passa nas festas de fim de ano, época em que Caio (Leonardo Medeiros), dono de um ferro-velho no interior, retorna à casa da família, escancarando feridas. Seu irmão (Paulo Guarnieri) tem um casamento de aparências; o pai (Lúcio Mauro) mora com uma mulher mais nova; e a matriarca (Darlene Glória) vive à base de psicotrópicos.

A fim de eternizar o que de melhor Selton nos deu na telona, a MUBI reservou ainda lugar de honra para o imparável "Lavoura Arcaica". O texto de Raduan nasceu como literatura em 1975 e virou filme pelas mãos de Luiz Fernando em 2001. No mundo acadêmico, a linguagem de Nassar foi saudada como sendo "uma revelação, dessas que marcam a história da nossa prosa narrativa", segundo o professor e crítico Alfredo Bosi (1936-2021). Já o longa conquistou 52 prêmios mundialmente, em Biarritz, Havana e Montreal, tendo sido projetado no prestigiado Festival de Roterdã.

Preparando-se para lançar "A Paixão Segundo GH", adaptação do romance homônimo de Clarice Lispector, com Maria Fernanda Cândido em estado de graça em cena, Luiz Fernando é o mais revolucionário diretor novelas e microsséries que a TV brasileira já conheceu. Pode dar à luz seu novo longa-metragem a qualquer momento. À espera, à espreita, sempre em criação, o realizador embala a obra-prima com a qual assombrou o audiovisual na primavera da chamada Retomada do cinema brasileiro. "Lavoura Arcaica" é um divisor de águas na forma de se narrar com a luz da câmera.

Em 1995, após cinco anos de degredo nas atividades cinematográficas do país, por conta da extinção da Embrafilme (distribuidora e fomentadora), numa canetada do então presidente Fernando Collor, o filme "Carlota Joaquina - A Princesa do Brasil" reinaugurou o sonho de se filmar com continuidade e excelência no país, abrindo as comportas para novos talentos. Saído de novelas e de especiais cultuados como "Renascer" (1993) e "Os Homens Querem Paz" (1991), Luiz Fernando enveredou pelos longas dialogando, a partir de imagens em movimento, com um marco da literatura nacional, a tal "lavoura" de Raduan Nassar. Em seu lançamento, a produção revolucionou todas as noções plásticas e filosóficas da arte de contar histórias com uma câmera, na fricção do Tempo e do Espaço, conquistando seis Candangos no Festival de Brasília, incluindo o de Melhor Filme (empatado com "Samba Riachão").

Espécie de estudo semiológico sobre a instituição família e sobre a ancestralidade, "Lavoura Arcaica" provoca um misto de euforia e desalento, quase como em um paradoxo. E as duas sensações são afluentes de uma mesma e caudalosa água: a liquidez da transgressão. A euforia se dá pelo fato de o choque estético causado pela prosa de Nassar em Luiz Fernando ter conduzido o cineasta a filmar da maneira mais pessoal possível, sem fronteiras mercadológicas e sem compromissos teóricos. A razão do desalento: a incômoda impressão de o longa parecer um caso isolado de invenção em nosso cinema, de uma potência jamais igualada.

Exuberante, o trabalho de Luiz Fernando talvez constituísse uma exceção mesmo na pangéia latino-americana, capaz de se amalgamar a outros poucos gestos cinéfilos do continente, como "Hamaca paraguya", de Paz Encina, egresso de Asunción, em 2006; "Post Tenebras Lux", do mexicano Carlos Reygadas, em 2012; e "O Abraço da Serpente", do colombiano Ciro Guerra, em 2015. Poucos foram os realizadores que se devotaram tanto à busca por uma sintaxe inovadora capaz de conciliar a fúria criativa da palavra literária com o apetite voraz da câmera. A feliz comparação deste diálogo do audiovisual com o texto de Raduan Nassar com "Limite" (1931), de Mario Peixoto, apontada em sua estreia, no site "No.", pelo crítico Carlos Alberto Mattos torna-se ainda mais pertinente conforme a produção contabiliza primaveras. Ambos falam de tempo. Ambos tratam tempo como Tempo, com o T maísculo que ressalta sua divindade. Para Peixoto e Luiz Fernando, o Tempo é quase um deus. Uma força demiúrgica que parece violar os Homens em sua fome de vitalidade, mas que é capaz de compensá-los com a iluminação.

Fotografado de modo febril por Walter Carvalho, "Lavoura Arcaica", o filme, tenta traduzir em um jorro imagético a importância da ancestralidade no caminho de cada um, tendo um soberbo Raul Cortez no papel de um pai controlador, que não entende o desejo de André em ganhar o mundo. Entende menos ainda a fúria nos instintos da filha vivida por Simone Spoladore. A trilha sonora é de Marco Antônio Guimarães. A sinfonia, contudo, vem dos gemidos de Selton, um titã na tela.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.