Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Hermano da Cahiers

'Trenque Lauquen' é um filme de duas partes que levou a Argentina às cabeças do Top Ten da Cahiers du Cinéma | Foto: Divulgação

Segundo a enquete anual da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), o título de "'O' Filme Do Ano" pertence à dramédia finlandesa "Folhas de Outono" ("Fallen Leaves"), de Aki Kaurismäki, já lançado. Entretanto, outro colegiado, beeeeeem mais polêmico, o time de críticos da "Cahiers Du Cinéma", a revista mais importante do planeta quando se fala sobre produção audiovisual, preferiu centrar seu afeto na América do Sul, numa produção com CEP na Argentina, fazendo dela seu xodó.

Na última sexta-feira, quando lançou sua edição de dezembro, em sua terra natal, a França, o periódico que teve François Truffaut e Jean-Luc Godard em seu rol de escribas anunciou o Top Ten de 2023, elencando no topo de sua lista dos dez melhores longas-metragens lançados de janeiro para cá "Trenque Lauquen", criação da El Pampero Cine, com 4h22 minutos de duração, dividida em duas partes (uma de 2h09 e outra de 2h13) dirigida pela cineasta Laura Citarella.

Kaurismäki ficou em quinto, na seleção dos franceses. O segundo lugar, depois da joia de Laura, foi "Fechar os Olhos", do espanhol Victor Erice. O terceiro colocado é o ganhador da Palma de Ouro: "Anatomia De Uma Queda", de Justine Triet. Em quarto aparece Spielberg e seu autobiográfico "Os Fablemans". Em sexto entra "Désordres", de Cyril Schaüblin. O sétimo colocado vem da Romênia e saiu do Festival de Locarno com o Prêmio do Júri: "Não Espere Muito Do Fim Do Mundo", de Radu Jude. A oitava vaga foi confiada a "Le Gang Des Bois du Temple", de Rabah Ameur-Zaïmeche, e a nona foi para "Culpa e Desejo", de Catherine Breillat, já em cartaz no Brasil. A décima colocação deu empate entre "Showing Up", de Kelly Reichardt, e "Um Prince", de Pierre Creton.

 

 

O bom cinema argentino nem sempre consegue reconhecimento na bíblia dos cinéfilos

Citarella diz que trata-se de um filme sem forma única | Foto: Divulgação

Mesmo admirado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que já lhe deu dois Oscars, o cinema argentino raramente consegue espaço nobre nas editorias da "Cahiers du Cinéma", encarada desde 1951 como a Bíblia do audiovisual. "Argentina, 1985", um fenômeno de público e crítica, ganhador do Globo de Ouro e da láurea da crítica em Veneza, mal conseguiu um quadradinho no coletivo de lançamentos da revista.

Mas "Trenque Lauquen" ganhou seis páginas e foi eleito pela publicação "O Filme do Mês". Seu título faz referência à província de economia agropecuária com cerca de 46 mil habitantes, que, segundo Google Maps e bússolas afins, fica situada a cinco horas e 30 minutos de carro de Buenos Aires, no sentido oeste. Proficiências não faltam ao longa-metragem, apesar de sua estrutura orçamentária mirrada para investir em marketing - compensada com soluções narrativas deslumbrantes. Lançada na mostra Orizzonti - uma das seções paralelas ao Leão de Ouro veneziano -, essa aventura existencialista foi eleita Melhor Filme Latino-Americano no Festival de Mar Del Plata, e ganhou prêmios no IndieLisboa e em Hainan, na China.

"Fizemos um filme mutante, que não tem uma forma única, movido pela plena ficção, mas que aponta para uma certa sensação universal de solidão ao apostar no desamparo de uma mulher que escapa de sua vida", definiu Citarella ao Correio da Manhã no Festival de San Sebastián, na Espanha, onde o longa encheu-se de elogios. "Existe uma tradição nas obras da Pampero de nos abrirmos mais a diálogos com o próprio cinema do que com cicatrizes sociais".

Produtora prolífica e diretora do ótimo "La Mujer De Los Perros" (2015), Citarella estrutura seu filme a partir do sumiço de Laura (vivida por Laura Paredes, também roteirista). Sabemos que ela desapareceu quando dois homens se engajam numa busca obsessiva por ela. De um lado está seu namorado, Rafael (Rafael Spregelburd). Do outro, um amigo dele, Ezequiel (Ezequiel Pierri), cujo carro foi levado embora pela desaparecida. Tudo indica que ela possa estar em Trenque Lauquen. E é pra lá que a dupla parte, interrogando diversos habitantes da região.

Em meio a esse processo quase detetivesco, saltamos para um exercício de memória por parte de Ezequiel, que pode ter sido a mola propulsora desse sumiço, após a descoberta de cartas eróticas numa biblioteca. Nessas cartas nasce o mistério de uma outra personagem, uma tal de Carmen, que esteve na área há décadas. Nada parece fechar com nada nesse enredo, que evoca "Twin Peaks", de David Lynch. Mas há um clima de mistério que nos prende na forma como Citarella se esgueira por rotinas aparentemente banais, mas cheias de segredo. Tem ainda uma rádio onde Laura mantinha uma comunicação, além do seu espaço de trabalho no Departamento de Transportes do governo, e no seu trabalho de pesquisa em biologia vegetal.

"A hipótese central de 'Trenque Lauquen' é conhecermos o impacto da decisão de alguém que resolveu viver outras vidas. Como a pessoa que toma essa atitude, num país sul-americano, é uma mulher, a ideia de que ela ficou louca é a primeira sensação que as pessoas têm", disse Citarella, numa alusão ao sexismo latino. "O desespero de viver mais é o que move Laura e, embora o filme acompanhe os esforços de dois homens, é a perspectiva de uma mulher que move tudo. O que eu busquei foi tentar narrar um mesmo episódio por miradas distintas, e mostrar alguém que pode caminhar sem objetivo, mas, sim, em busca de um sentido existencial".

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