Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Aruandando e cantandoe seguindo a canção

Saudosa Maloca | Foto: Divulgação

Aos 45 minutos do segundo tempo do fechamento do calendário das mostras competitivas de filmes brasileiros, o Fest Aruanda chega, via Paraíba, para ensaiar um fecho de luxo na busca estética (e política) que norteou a produção audiovisual do país de janeiro até hoje. Professor da UFPB, crítico e documentarista, Lúcio Villar comanda o evento que chega aos 18 anos com maturidade para encarar a vida adulta dos eventos do setor, cercado de prestígio. Ao apostar em debates sobre a inclusão e combater preconceitos diversos, a maratona cinéfila de João Pessoa abre um debate fino sobre as temáticas mais urgentes do país, celebrando sobretudo a diversidade da música popular e suas dramaturgias. Ana Rieper abriu os trabalhos na última quinta com o .doc "Nada Será Como Antes", sobre o Clube da Esquina de Minas Gerais. Sexta foi dada a largada para a disputa de prêmios, com o inédito "Citroloxix", de Julia Zakia (São Paulo). Concorrem com ela "Levante", de Lillah Halla (São Paulo); "Ana", de Marcus Faustini (Rio de Janeiro); "Othelo, o Grande", de Lucas H. Rossi dos Santos (Rio de Janeiro); "Saudosa Maloca", de Pedro Serrano (São Paulo); e "Peréio, Eu Te Odeio", de Tasso Dourado e Allan Sieber (RJ e SP). Nesta quarta, às vésperas do encerramento das atividades de sua micareta de pesquisa e reflexão cinematográfica, Villar presenteia seus convidados com a visita de um ícone da canção, famoso sobretudo pelo hit "Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores": Geraldo Vandré. Ela será sabatinado sobre sua relevância para a cultura nacional. Cultura essa que renova suas baterias à cada Fest Aruanda. Confira a seguir o que já rolou de bom nas telonas do Manaíra Shopping, que acolhe o cardápio da agitação cinéfila da Paraíba.

 

'A Planta' põe Beto Brant em fotossíntese

A Planta | Foto: Fotos/Divulgação

Responsável por três implacáveis retratos da violência institucionalizada no país que geraram uma convulsão na crítica e no público nos tempos da Retomada, com "Os Matadores" (1997), "Ação Entre Amigos" (1998) e "O Invasor" (2002), o paulista Beto Brant integra o júri da 18ª edição do Fest Aruanda, ao lado da atriz Soia Lira e do diretor Rafael Conde. Assumiu ainda a tarefa de exibir por lá seu novíssimo trabalho como realizador em projeção hors-concours na tarde desta segunda: o iluminista "A Planta", um .doc. Editado com elegância por Manga Campion, "A Planta" é um filme de respiro, e de coragem. Na narrativa, somos bombardeados - com delicadeza - por uma série de depoimentos de múltiplos personagens, de diferentes perspectivas, todas orbitando o fato de que a cannabis medicinal alivia os sintomas de doenças e traz melhor qualidade de vida.

'Levante' sacode a poeira no Nordeste

Othelo, o Grande | Foto: Divulgação

Coroado com o troféu Redentor de Melhor Direção no Festival do Rio, em outubro, "Levante" não cessa de trazer alegrias para a cineasta Lillah Halla e, a julgar por sua projeção no sábado, pode render a ela láureas de peso do Fest Aruanda. Faz pouco, o longa conquistou o Coelho de Ouro no Festival Mix Brasil. Seu rol de vitórias foi aberto em Cannes, em maio.

Sempre que a Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) concedeu sua láurea, definida como O Prêmio da Crítica, a um longa brasileiro, os caminhos dos títulos vencedores - e das vozes autorais por trás de sua direção - se abriram para o Infinito.

O longa foi revelado na Semana da Crítica de Cannes e agraciado com o diploma dados por uma das instituições que mais e melhor preservam a dimensão transgressora da autoralidade nas telas.

Palhinha de Adoniran Barbosa

Saudosa Maloca | Foto: Divulgação

São muitos os vértices de excelência de "Saudosa Maloca", disparadamente o mais encantador de todos os concorrentes ao troféu de Melhor Longa-Metragem do Fest Aruanda 2023. Sua dramaturgia fala de gentrificação numa São Paulo de arranha-céus a partir das travessias e das travessuras do compositor e cantor Adoniran Barbosa (1910-1982) e seus parceiros de birita e de batuque. O desempenho de Paulo Miklos é imparável no retrato da realidade paulistana bem fotografada por Lito mendes da Rocha. A produção forma um triunvirato autoralíssimo com dois outros belos trabalhos do realizador Pedro Serrano: o curta "Dá Licença De Contar", de 2015, e o longa documental "Adoniran - Meu Nome É João Rubinato", de 2018.

Na trama de seu estonteante tratado sobre saudade, Serrano nos leva a uma mesa de bar de SP, onde o velho Adoniran (Miklos, sublime) conta a um jovem garçom (Sidney Santiago Kwanza) anedotas de uma metrópole que já não existe. Lembra com carinho da maloca onde viveu com Joca (Gustavo Machado) e Mato Grosso (Gero Camilo), destacando a paixão deles pela atendente de bar e aspirante a estilista Iracema (Leilah Moreno, luminosa em cena) e de outros personagens eternizados em seus sambas. O filme mostra como as letras de Adoniran se tornaram crônicas de uma terra engolida pelo apetite voraz do "pogréssio".

 

'Citrotox': (re)nasce uma estrela

Citrotoxic | Foto: Divulgação

Em cartaz na streaminguesfera no elenco da série Disney "A Magia de Aruna", Bianca Joy Porte fez feitiço para cativar o olhar e o respeito de Aruanda, longo no arranque da mostra competitiva, na sexta, com seu desempenho no tenso "Citrotoxic", de Julia Zakia. Premiada por sua arrebatadora atuação em "Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade" com o troféu Redentor do Festival do Rio 2014, ela se reinventa nas veredas do suspense e do mistério no longa de tons ecológicos da diretora de fotografia de joias como "Alfazema" (2019). Na trama, sua personagem é sua xará: Bianca. Ela trabalha como comissária de bordo e tem uma filha que sofre de doenças respiratórias agravadas pelos poluentes no céu de São Paulo. A pedido da médica da menina, ela leva a guria para uma breve temporada numa casinha no campo, mas passa a se assombrar com os estranhos métodos de um trabalhador agrícola que espalha agrotóxico nas plantações à sua volta. A narrativa de Zakia dispensa explicações e detalhes, mas é capaz de elevar a pressão a níveis convulsivos.

A periferia de Faustini

Ana | Foto: Divulgação

Responsável por uma renovação do olhar na prática das políticas culturais cariocas em seu mandato como Secretário de Cultura do governo Eduardo Paes de janeiro de 2021 até janeiro deste ano, Marcus Vinícius Faustini sempre levou as Ciências Sociais para a ribalta em sua obra como encenador nos palcos, vide o brilhante "O Filho do Presidente", encenado em 2017. Uma abordagem igualmente sociológica marca sua carreira como cineasta, como o Fest Aruanda viu no domingo, durante a projeção do vigoroso "Ana", uma mistura do Ken Loach de "Meu Nome É Joe" (1998) com o Mike Leigh de "Mais Um Ano" (2010). Assumidamente influenciada por "O Grande Momento" (1958), de Roberto Santos, a trama lembra "Rocco e Seus Irmãos" ao retratar o laço de fraternidade entre uma passeadora de cães (Priscila Lima, numa daquelas atuações de chapar o coco) e um jovem que se prepara para um show drag (Gustavo Luz, um fortíssimo candidato ao prêmio de Melhor Ator). Vinícius Oliveira, o guri de "Central do Brasil" (1998), dá em cena a atuação mais deslumbrante de sua carreira, numa síntese da rascância da vida sub-urbana. "Eu diria que o 'Ana' se filia a uma tradição de cinema independente que busca dar vida nas telas a personagens das classes menos favorecidas da sociedade e que vivem suas vidas marcadas pela experiência de circularem nas cidades, em busca de trabalhos, de afetos…", diz Faustini.

O que será do amanhã

Othelo, o Grande | Foto: Divulgação

Antes de encerrar suas atividades com "Black Rio! Black Power", documentário de Emílio Domingos sobre soul music, o Fest Aruanda ainda tem uma noite de competição pela frente. A terça terá a projeção de dois curtas: "Vão das Almas", de Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape, e "Emerenciana", de Larissa Nepomuceno. Na sequência, será projetado o longa "Othelo, o Grande", de Lucas H. Rossi dos Santos, que conquistou o troféu Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio. Numa aula de montagem o longa costura imagens de arquivo para reconstituir a vida e a obra do ator Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993). O roteiro aborda suas parcerias com Joaquim Pedro de Andrade, Werner Herzog, Júlio Bressane e Nelson Pereira dos Santos e relembra sua peleja contra o racismo.

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