Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / CINEMA / PUAN | Leviatã do humor argentino

Sbaraglia aperta a mão de Subiotto | Foto: Divulgação

Representado no topo da lista dos 10 Melhores Filmes do Ano da "Cahiers du Cinéma" com "Trenque Lauquen", de Laura Citarella, e preparado para levar sua mais famosa graphic novel ("El Eternauta") para o streaming, o audiovisual argentino vive um 2023 de sucessos, tanto na venda de ingressos quanto na consagração aos olhos da crítica. O Globo de Ouro entregue em janeiro ao thriller jurídico "Argentina, 1985", de Santiago Mitre, serviu como largada para o rol de êxitos de nuestros hermanos nas telas, incluindo a seara da coprodução internacional - na qual o Brasil é um parceiro bem-vindo. A prova é a sinergia que caracteriza "Puan", delícia de comédia, hoje em cartaz, depois de uma luminosa passagem pelo Festival de San Sebastián, na Espanha. Saiu de lá com os prêmios de Melhor Roteiro (escrito por sua dupla de realizadores, María Alché e Benjamín Naishtat) e Melhor Ator, confiado a Marcelo Subiotto. Carregando a grife de qualidade da produtora brasileira Bubbles Project (laureada com o Leopardo de Ouro de 2022 por "Regra 34"), o longa associa a Kino Produzioni, a Pandora Film Produktion, o Aterlier de Production e o Infinity Hill, unindo forças da Itália, da França e da Alemanha a seus parceiros sul-americanos, com distribuição entre nós pela Vitrine Filmes.

Até o momento, "Puan" está em quarto lugar da lista de filmes argentinos mais vistos lá por Buenos Aires e suas cidades vizinhas de janeiro até novembro, com 120 mil ingressos vendidos. Antes dele estão: 1°) "La Extorsión", de Martino Zaidelis, visto por 550 mil pagantes; 2°) "Quando Acecha La Maldad", de Demian Rugna; e 3°) "Casi Muerta", de Fernán Mirás.

A boa acolhida a "Puán" se deve não apenas à sua escrita leve, mas também à identificação que sua reflexão estética e sociológica gera no público brasileiro, em especial pela discussão da rede pública de ensino. O título se refere ao nome da rua onde fica a Faculdade de Filosofia de Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA), num perímetro chamado de Caballito. É um centro de estudos essencial às Ciências Sociais dos portenhos. Não por acaso, um professor de Teoria Política é seu protagonista, que carrega um quê dos personagens de Woody Allen em seu jeito atrapalhado. Sua comicidade se expressa numa sucessão de escolhas infelizes e num gestual abilolado, mas jamais resvala na caricatura. Nem teria meios de resvalar uma vez que a elegância impera na abordagem da direção, feita por um duo azeitado. A cineasta María Alché traz no currículo o doído "Família Submersa", de 2018. Naquele mesmo ano, Naishtat, seu companheiro, emplacou o febril "Vermelho Sol" ("Rojo").

Junto deles, nesta imersão ao contingente universitário, está a fotógrafa francesa Hélène Louvart (premiada na Berlinale deste ano por "Disco Boy"). A luz de Héléne garante ebulição visual - num requinte plástico dionisíaco - a uma narrativa que parece se calcar em palavras.

Craques em desenvolver enredos pautados pelo mistério, María e Naishtat abrem "Puan" com um embate de vaidades intelectuais universitárias, mas conduzem a narrativa por uma trilha sociológica encantadora, debatendo a brutalidade estatal com o corpo docente. Flagra-se o gradual sucateamento dos aparelhos de educação de uma pátria convulsionada pela inflação, o que se vê numa tomada num supermercado centrado na compra de bebidas por professores de soldo baixo. O mapeamento de crises no âmbito educacional aproxima a produção de seu conterrâneo "El Estudiante", do já citado Santiago Mitre, que ganhou o Prémio Especial do Júri em Locarno, em 2011, ao ilustrar as militâncias do sistema estudantil da Argentina.

Mitre cartografava a Educação sob um viés catastrofista, num drama impossível de equalizar. "Puan" vai por outra rota, mais debochada, porém, bastante sentimental. Há esperança a cada virada, mesmo nas situações mais selvagens enfrentadas pelo filósofo Marcelo Pena, papel que arranca de Marcelo Subiotto uma atuação em estado de graça, na medida exata da fragilidade.

Seu personagem cita cânones da Sociologia em sua classe (Thomas Hobbes e seu Leviatã, sobretudo) e dá aulas sobre o filósofo Martin Heidegger (1899-1976) num curso particular para uma madame riquíssima, que ronca quando ele adentra o devir do pensamento ocidental. Num momento de ebulição da dramaturgia, essas aulas particulares vão render um episódio afrontoso, no qual o abuso da aristocracia salta aos olhos, numa sequência de eventos patéticos que roubam a nossa risada ao expor a obediência servil. Mas os problemas de Pena vão além disso.

Depois de anos de docência, ele tem a chance de assumir o posto deixado pelo seu antigo mestre, que acaba de morrer. Como suas ideias são brilhantes e ele sempre foi CDF, suas chances de ser promovido são grandes. Mas o retorno de um apavonado colega do passado, o professor Sujarchuck (Leonardo Sbaraglia, num desempenho genial), tira seus planos do eixo e abalam sua paz. Esse rival não encara a Filosofia com respeito. Ele só pensa em holofotes, faz citações em Alemão para soar erudito e namora uma diva do Tik Tok e de séries. Mas a destreza de Sujarchuck ao jogar dentro das regras da prevaricação burocrática enfraquece Pena - e muito. É retórica barata versus competência. O pior: toda a faculdade aplaude o pavão, sem enxergar seu lado ave de rapina. É aí que Pena se percebe um cordeiro e se dá conta de que um sistema de ensino inteiro está encoleirado na mesma e perversa dinâmica.

Sem desperdiçar um só segundo, sem perder uma só piada, num ritmo de edição irretocável, dado pela montagem de Lívia Serpa, "Puan" transforma Pena numa espécie de herói bufo de uma guerra do idealismo contra um sistema bugado pela lábia e pelo desdém das autoridades.

 

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