Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Juntos e misturados na maluquez de Herzog

Werner Herzog ganha mostra na Caixa Cultural | Foto: Divulgação

Fã de Eddie Murphy, que o fez rir como ninguém, entusiasta da obra de Ruy Guerra, a quem dirigiu um par de vezes, e movido pelo desejo de desfiar ilusões da moral, o alemão Werner Herzog diz que gasta mais tempo lendo poemas - mesmo os da antiguidade grega - do que vendo filmes.

Porém, desde 1961, quando começou a produção do curta-metragem "Herakles" (finalizado no ano seguinte, marcando sua estreia como realizador), é por meio de filmes que suas inquietações ganharam o mundo, arrebatam a crítica, colecionaram fãs e lhe renderam um oceano de honrarias.

Uma das mais importantes é a Carroça de Ouro, honraria concedida pela Quinzena de Cineastas do Festival de Cannes a artesões da imagem com status de mestre. O status desse diretor germânico de 81 anos, que também é professor, escritor (lançou há pouco o fascinante "O Crepúsculo do Mundo", pela Editora Todavia) e ator (é o vilão da série "O Mandaloriano", da Disney ), poderá ser visto, revisto e aplaudido pelo público carioca numa mostra na Caixa Cultural que abre suas portas para o público nesta quarta-feira.

"Existe a ordem racional e existe a natureza. O cinema é algo que interponho entre esses dois extremos", disse Herzog ao Correio da Manhã em Cannes, em 2019, numa palestra ao lado da atriz Julianne Moore e do diretor e ator Xavier Dolan. "Existe um mundo lá fora, sem regras da moral, distante dos dispositivos do processo artístico, onde as pessoas vivem em ambientes muito diferentes do que qualquer contingência da razão possa definir. Eu saio a campo, com a câmera na mão, em busca dessas práticas de viver, a fim de conhecê-las, mas não de dominá-las. Faço cinema desde o tempo em que só festivais absorviam práticas como essa. Hoje, há mais diversidade, mas o risco ainda instiga".


 

Um realizador de visão singular

O Diamante Branco | Foto: Divulgação

Com curadoria da diretora e roteirista Sylvia Palma e do crítico Filippo Pitanga, a retrospectiva "Herzog - Além das Margens" recebe a plateia nesta quarta-feira (13) com o filme que jogou holofotes sobre o cineasta, após um período (curto) de pouca notoriedade entre o fim dos anos 1990 e o início dos 2000: "O Homem Urso" ("Grizzly Man", 2005), premiado nos festivais de Sundance, nos EUA, e Sitges, na Espanha. A sessão é às 13h15, na sede da Caixa Cultural (na Rua do Passeio, 38, Centro).

Às 15h20, tem "As Asas da Esperança" (1999) e, às 16h50, rola a joia "O Enigma de Kaspar Hauser", que deu a ele o Grande Prêmio do Júri de Cannes em 1975, além da Láurea do Júri Ecumênico e da Láurea da Crítica, dada pela Fipresci (Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica). Para sábado, às 14h, a mostra agendou um dos filmes mais potentes do diretor na década passada: "Encontrando Gorbachev", que brilhou no Festival de Tribeca 2019.

Para encerrar a programação dessa obrigatória imersão no olhar de um artista que é signo vivo de ousadia, no dia 23 de dezembro, Sylvia e Pitanga escalaram "Aguirre, A Cólera dos Deuses" (1972), um dos filmes europeus mais influentes da década de 1970. Seu foco está num recanto inóspito da Amazônia. É lá que a cabeça de Herzog anda neste momento. Anda empenhado em retirar do papel um documentário sobre uma fábrica da Ford na selva Amazônica, terreno que instiga sua imaginação pela potência de sua reserva ecológica e pela resiliência dos povos originários. O cineasta olha para as culturas indígenas numa mirada decolonial, existencialista. Além dela, existe a loucura, outro de seus fetiches. Desde seu primeiro longa, "Sinais de Vida" (produção de 1968, agendado pela Caixa Cultural para o dia 23, às 14h), ele vem explorando a insanidade em espaços geográficos nem sempre seguros, como vulcões e cavernas inóspitas. Algumas dessas aventuras, dessa sua geografia de risco, dessa poética singular alimentaram uma exposição exibida no início deste ano, na Deutsche Kinemathek, a cinemateca da Alemanha, em Berlim. Tratava-se de uma coleção de desenhos, objetos e, sobretudo, fotos que mapeiam toda a trajetória dele pelas telas, com destaque para sua passagem por Manaus, nas filmagens do cult "Fitzcarraldo", pelo qual recebeu a láurea de Melhor Direção no Festival de Cannes, em 1982. Retratos de Claudia Cardinale e de seu ator assinatura, Klaus Kinski (1926-1991) estampam as paredes do chamado Museu do Filme berlinense. Tem até um rato empalhado (ou talvez seja um boneco, ninguém da curadoria confirma) que acompanhou Kinski em suas noites como vampiro na versão que Herzog fez de "Nosferatu", de Murnau, à sua maneira autoralíssima, em 1979.

Na grade da Caixa Cultural, a porção vampírica da Klaus Kinski está agendada para domingo, às 15 - e vale MUITO ver "Nosferatu" na telona. Já "Fitzcarraldo" ficou para o dia 22, às 15h10.

"Eu já consegui extrair de atores como Nicolas Cage atuações bem-humoradas que te fazem sentir diante de uma comédia com Eddie Murphy, aquelas boas, hilárias, dos anos 1980, mas já consegui fazer com que pessoas sem qualquer experiência teatral se abrissem para a atuação, só focando no que a condição humana tem de mais simples, de mais corriqueiro. É preciso saber observar a Natureza. Os espetáculos todos brotam da Natureza", explicou Herzog ao Correio da Manhã em Cannes, há quatro anos, ao lançar "Uma História de Família", uma de suas raras ficções nas últimas duas décadas.

A menção a Nicolas Cage envolve o aclamado "Vício Frenético", com o qual ele concorreu ao Leão de Ouro em Veneza. Tem sessão dele, na Caixa Cultural, no dia 21, às 17h50. Ao narrar as tramoias de um policial viciado, ele renovou a legião de fãs que começou a angariar no fim dos anos 1960, quando integrou a nata do Cinema Novo Alemão, ao lado de Wim Wenders, Volker Schlöndorff, Rainer Werner Fassbinder e Margarethe von Trotta. "A loucura vira estética quando alimenta potências", disse Herzog na exposição berlinense. Agora é vez de o Rio se deixar contagiar por sua 'maluquez'.

 

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