Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Propriedade' da ação

'Propriedade' é uma eletrizante narrativa de de reflexão social sobre a necessidade da reforma agrária | Foto: Divulgação

Visto por cerca de 80 mil pagantes em sua arrancada, "O Sequestro do Voo 375" demonstrou que existe, sim, público pagante afoito por ver thrillers brasileiros, apontando uma demanda que, a partir do dia 21, volta a ser aplacada - com muito requinte - por "Propriedade".

É uma eletrizante narrativa de reflexão social que chega de Pernambuco endossado pelos elogios das plateias da mostra Panorama da Berlinale. Que filme precioso (e preciso) é o novo exercício autoral Daniel Bandeira, que saiu com a (merecida) láurea de Melhor Montagem da Première Brasil do Festival do Rio 2022. Na sequência, foi para o Fest Aruanda, na Paraíba, onde ganhou as láureas de Melhor Direção, Som, Direção de Arte, Figurino e Fotografia. São vitórias que dão prestígio a uma forma singular (e sociológica) de gerar tensão.

É uma trama sobre as sequelas da falta de reforma agrária no Nordeste (metonímia de uma crise que é nacional), analisando conflitos de classe a partir da reação popular. Tem ecos de "Bacurau" (2019) na maneira de enquadrar as reações de um povo ao abuso de figuras que impõem domínio pela força econômica. Matheus Farias, seu editor, montou o trailer do cult de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, com quem trabalhou ainda no aclamado "Retratos Fantasmas".

Em junho do ano passado, Bandeira conseguiu "desengavetar" seu primeiro longa, que ficou anos a fio (15, pra sermos exatos) na fila dos Sem Tela: "Amigo de Risco", exibido pela primeira vez em 2007. Na trama, o malandro Joca (Irandhir) nunca foi flor que se cheire e, por isso, teve de sair do Recife. Mas, baixada sua poeira, ele está de volta. E resolve celebrar com os parceiros do coração: Nelsão (Paulo Dias), garçom cheio de dívidas com agiotas, e Benito (Rodrigo Riszla, uma força da natureza), funcionário bovino de uma gráfica. Um reencontro regado a cevada abre precedentes para sonhos, projetos e inquietações entre eles, até que Joca, numa visita a uma boate, passa mal e desmaia, sob o vetor de um certo pó branco em suas vias nasais. Sem dinheiro, transporte ou comunicação, seus parceiros o carregam pela cidade deserta, onde cada esquina guarda surpresas... e o tal "risco" do título.

Agora, em um novo (e mais maduro) trabalho, Bandeira trabalha a ideia do que é "arriscado" não mais no plano urbano de uma metrópole, em deslocamento, mas, sim, na condição de inércia forçada de uma artista de classe social abastada acossada por uma multidão de pessoas que tiveram seus empregos reduzidos a pó. E isso num contingente rural. Malu Galli esbanja potência trágica no papel de uma estilista traumatizada por uma situação em que foi refém. Na luta contra os fantasmas do passado, ela se vê em frente a um novo perigo quando os trabalhadores da fazenda de seu marido (um sujeito sexista e usurário) fazem um motim em prol de seus direitos trabalhistas, mantendo-a recolhida em um carro blindado. É uma mistura de John Carpenter (em "Assalto à 13ª DP", de 1974) com o Roman Polanski de "Cul-de-sac: Armadilha do Destino" (Urso de Ouro de 1966). Seu roteiro faz jus à natureza autoral de seu diretor, ao usar o tempo narrativo numa compressão absoluta, até um transbordamento no qual explode em horrores sociológicos. E Malu vira a melhor scream queen (diva do terror) que o cinema nacional já viu, com um visual à la Jamie Lee Curtis. Na autópsia em corpo vivo daquele quinhão do Nordeste, Bandeira dá aula de reforma agrária regada a adrenalina.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.